quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Feliz 2009


Agora que o último ocaso do ano velho já aconteceu, saudemos a aurora do novo!

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Left...


terça-feira, 23 de dezembro de 2008

O maior da minha rua


O Alberto não era o maior da minha rua, porque o Alberto não era da minha rua. Eu é que hoje moro na rua dele. O Alberto era, portanto, o maior da sua rua. Mas, como a minha rua faz fronteira com a dele e porque também éramos da mesma classe (não lhe chamávamos turma na Primária), vivemos histórias comuns, muitas vezes em lados opostos das barricadas.
O Alberto não era o maior da sua rua em tamanho ou em idade, era tão-só o mais galhardo, o mais valente, o mais maluco. Eram dele as ideias mais loucas para entretenimento da malta. Foi ele quem “abriu” aquele Fiat 600 branco que alguém deixou abandonado lá na rua o tempo suficiente para despertar a curiosidade e a cobiça dos pequenos vagabundos da Rua H de baixo. E era vê-los a empurrarem o carro rua acima, com o Alberto sempre a orientar a manobra, para depois se enfiarem todos lá dentro e, sempre com o Alberto ao volante, deslizarem rua abaixo até embaterem, com grande estrondo e algumas marcas corporais, nos arbustos que marginavam o seco arroio a que chamávamos regueira e que marcava os limites não só da rua como do bairro – a seguir começava o caminho para a vacaria, serpenteando pelo meio da seara.
Sempre nos roemos de inveja por nunca termos podido entrar em tão loucas carreiras, apenas pelo facto de sermos da outra rua. É claro que eles também nunca viajaram parados no nosso carro, o qual tínhamos também “aberto”, mas que não podíamos fazer circular dada a configuração da nossa praceta – as nossas viagens eram mais imaginárias, do tipo “Hoje vamos até ao meu Alentejo; conduzo eu, que sei o caminho; amanhã levas tu o carro para o teu.” Já terá dado para perceber que na minha rua havia vários “maiores” – uns eram-no num plano, outros noutro.
Fomos crescendo, em corpo e em aventuras, e o Alberto foi continuando a ser o maior da rua dele. Já mais velhos, as diferenças “tribais” foram desaparecendo e os domínios de cada um começaram a ultrapassar as fronteiras da rua para se alargarem à dimensão do bairro. Cedo chegámos à idade de ficar na rua até querermos, noite e madrugada dentro, ocupando o tempo num misto de brincadeiras de adultos com o resto das que ficaram do tempo de criança. A bicicleta, transportando-nos de meninos a homens, cumpria, como nenhum outro brinquedo, essa função. As bicicletas que trazíamos da infância cresceram connosco – os selins foram subindo, as rodas foram aumentando até ao limite do garfo – e, como nós, foram mudando e aperfeiçoando o estilo – perderam os guarda-lamas e as campainhas, ganharam guiadores de cross com punhos a condizer, e até os pedais foram substituídos, tal como a pintura de origem.
Também com a bicicleta o Alberto tinha de ser o maior – agora, o maior dos maiores. Fazíamos corridas contra-relógio na rua até às duas da manhã, com algum perigo, para nós e para os (ainda que poucos naquele tempo) automobilistas. O Alberto, um dia, ou melhor uma noite, desviando-se in extremis de uma Ford Transit que subia a rua, espalhou-se no átrio da escada do seu prédio, porque felizmente a porta estava escancarada.
Quando um de nós precisava de uma qualquer peça para a sua máquina, íamos todos, em bando, a Queluz, à oficina do velho Carreta. Escusado seria dizer que enquanto um negociava para comprar, lá dentro, os outros, cá fora, iam trocando peças das bicicletas que traziam por outras das que estavam para arranjo ou já arranjadas. Não era bem um roubo, porque na maior parte das vezes funcionava na base da troca.
Numa dessas infindáveis e douradas tardes de fim de Primavera ou de princípio de Verão, em que – precursores das vias e infra-estruturas futuras – atalhávamos caminho pela seara de Queluz Ocidental, logo depois da figueira brava, passando a linha do comboio com as "biclas" às costas no sítio exacto onde vieram a construir a estação nova, para pedalarmos, a corta-mato, pelas traseiras do Palácio, ao lado das cavalariças ao tempo ocupadas pelos equídeos da GNR. O Alberto, obviamente, ia na frente, a uma distância razoável do pelotão. Tão confiante se mostrava que, sempre pedalando, ladeira abaixo, ia, virado para trás, provocando os perseguidores e vangloriando-se com o cheiro da vitória antecipada, enquanto nós, gesticulando e gritando, lhe dizíamos para olhar para a frente. Quando, finalmente, decidiu virar-se na direcção do seu destino, já era tarde de mais: estava a entrar no maior monte de estrume de cavalo que me lembro de alguma vez ter visto, com bicicleta e tudo. É claro que, depois de se desenvencilhar do monturo, lhe demos a maior distância possível, enquanto se encaminhava para o Jamor, que na época não estaria muito mais limpo do que ele.



* Alberto é um nome fictício para uma personagem real.

** Esta resposta ao desafio da Lady Godiva do “
Mar Aberto” não é lá muito natalícia, mas...

*** Roubei a foto
aqui.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

On the road again



Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.

Manuel Bandeira

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

The Plasmatics - Chaos 1981

Digam lá que os anos 80 não foram loucos, vá, digam!

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Requerimento à Censura, Tom Zé

Do tempo em que, por haver censura prévia, se tinha de ser mais criativo para a ludibriar e desafiar.
Hoje, é claro que se pode dizer tudo, principalmente porque ninguém ouve ninguém, o que torna inconsequente o que se diga...

Monteverdi: Vespro della Beata Vergine: Magnificat (1)

Música dos céus na terra...

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

domingo, 7 de dezembro de 2008

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

O desafio da Clarice

A nossa amiga Clarice desafiou a malta para uma actividade lúdico-confessional.
Aceitando a proposta, aqui está o resultado:


1. um bocadão de mim...
2. A banda escolhida: Pink Floyd.

3.

3.1. És homem ou mulher? I am just a new boy/ A stranger in this town (primeiros versos de “Young Lust”).

3.2. Descreve-te: Ainda sou “One of the Few” que continuam “On the Run”, “Wearing the Inside Out”.

3.3. O que pensam as pessoas de ti? Muitos pensam que tenho “Brain Damage” e, ao olharem para os meus “Paranoid Eyes”, dizem-me: “Shine on Your Crazy Diamond”.

3.4. Como descreves o teu último relacionamento:
“Another Brick in the Wall”.

3.5. Descreve o estado actual da tua relação:
“Empty Spaces”.

3.6. Onde querias estar agora?
“Outside the Wall”, “Learning to Fly”.

3.7. O que pensas a respeito do amor?
É tão belo e tão difícil de concretizar como “Two Suns in the Sunset”; disse difícil, não impossível, porque ainda sobram algumas “High Hopes” de “Coming Back to Life”.

3.8. Como é a tua vida?
“Comfortably Numb”.

3.9. O que pedirias se pudesses ter só um desejo?
“Yet Another Movie”: “Happiest Days of Our Lives”.

3.10. Escreve uma frase sábia:
“Let There Be More Light”.


4. Como das poucas pessoas que conheço por estas bandas já quase todas responderam ao desafio, vou ter de alargar o escopo da coisa. Lanço, por minha vez, o desafio a:

Aristóteles

Buda

Jesus Cristo

Karl Marx

ou qualquer outro indivíduo que, mesmo que não esteja definitivamente morto, não se ande "a sentir lá muito bem"...

Wireless


Pensei entrar em pânico e desesperar se e quando isto me acontecesse, mas aquilo que sinto é uma estranha serenidade e a plena consciência de que não me restam muitos minutos de oxigénio e de que o meu fato e restante equipamento talvez não resistam até então. Não há lugar para o medo nem para lamentações. Nunca nenhum homem pôde, como eu, morrer de forma tão bela, viajando à deriva, mergulhado no caldo primordial, em comunhão com todos os elementos que constituem, desde sempre e para sempre, o nosso universo. Não, não vou morrer; vou regressar ao que sempre fui. E nem quero pensar muito nisso. Quero aproveitar cada momento da mais bela viagem de todas. Quero ver tudo até ao último instante. A Terra é tão bela vista de longe. E parece tão quente e tão alegre. Ah! Frio! Muito frio! Talvez tenha começado a penetrar no fato pelo rasgão do cordão umbilical que me prendia à estação... Que belo! Que belo! Que belo!...

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Anos 80

Os trabalhadores do comércio lá estão de serviço em mais um feriado (e como trabalho infantil)...

domingo, 30 de novembro de 2008

Um conto de Natal

Parece que chegou o Natal... entremos no espírito!

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

A Flober

Parece que foi noutra vida...


Parece que foi noutra vida, mas não passou tanto tempo assim desde aquele fim de férias em que 'desci' do meu porto de abrigo e fui ao teu encontro na Carrapeteira "para fecharmos o Verão". Ainda respirávamos tranquilidade; ainda discutíamos e divergíamos, com fervor, mas com fair play, sobre os mais variados assuntos e sobre as nossas vidas; ainda nos sentíamos jovens enquanto adultos; ainda continuávamos a construir a nossa amizade, pois ainda havia caminho a percorrer; ainda não tinham acontecido algumas das catástrofes que se avizinhavam - as tuas, as nossas, as do mundo...
A Praia do Amado, tarde fora... o jantar no Sítio do Rio, noite dentro... o salto a Sagres, já madrugada... este tema dos St. Germain ouvido pela primeira vez por todos os que estavam nessa noite no Dromedário, muito alto, bem batido, fazendo mover todos os músculos de todos os corpos e até vibrar todas as mesas e todos os copos...
O que veio mais tarde - mea culpa, mea maxima culpa! - não pode apagar esses dias em que a nossa amizade chegou perto do cume... Tenho saudades tuas e minhas!
* este é que é o post que eu queria ter publicado hoje de manhã... mas desta foi...

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Le Silence de la Mer

A ti, Mario, poeta-carteiro (de Pablo Neruda)

domingo, 23 de novembro de 2008

The Stone Age

"A pedido de várias famílias", uma continuação da História do Mundo...

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Primordial


O começo do Mundo
Primeiro que tudo houve o Caos, e depois
a Terra de peito ingente, suporte inabalável de tudo quanto existe,
e Eros, o mais belo entre os deuses imortais,
que amolece os membros e, no peito de todos os homens e deuses,
domina o espírito e a vontade esclarecida.
Do Caos nasceram o Érebo e a negra Noite
e da Noite, por sua vez, o Éter e o Dia.
A Terra gerou primeiro o Céu constelado,
com o seu tamanho, para que a cobrisse por todo
e fosse para sempre a mansão segura dos deuses bem-aventurados.
Gerou ainda as altas Montanhas, morada aprazível
das deusas Ninfas, que habitam os montes cercados de vales.
Hesíodo, Teogonia, 116-130

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Coisas do Arco da Velha



Lentamente
foi percorrendo todos os anéis do arco-íris,
até que
se lhe esgotaram as lágrimas...

domingo, 16 de novembro de 2008

sábado, 15 de novembro de 2008

O Dia da Criação - I


I


Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas como o mar
E bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos salvar.
Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por vias das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo o mal.

Hoje é sábado, amanhã é domingo
A manhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado.

Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas
Porque hoje é sábado.

Vinicius de Moraes

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Há pó no ar! (Urso da Casa Azul) RTP2

As coisas que a miúda me faz descobrir!...

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Life Sentence

479.

Entrei no barbeiro no modo do costume, com o prazer de me ser fácil entrar sem constrangimento nas casas conhecidas. A minha sensibilidade do novo é angustiante: tenho calma só onde já tenho estado.
Quando me sentei na cadeira, perguntei, por um acaso que lembra, ao rapaz barbeiro que me ia colocando no pescoço um linho frio e limpo, como ia o colega da cadeira da direita, mais velho e com espírito, que estava doente. Perguntei-lhe sem que me pesasse a necessidade de perguntar: ocorreu-me a oportunidade pelo local e pela lembrança. «Morreu ontem», respondeu sem tom a voz que estava por detrás da toalha e de mim, e cujos dedos se erguiam da última inserção na nuca, entre mim e o colarinho. Toda a minha boa disposição irracional morreu de repente, como o barbeiro eternamente ausente da cadeira ao lado. Fez frio em tudo quanto penso. Não disse nada.
Saudades! Tenho-as até do que me não foi nada, por uma angústia de fuga do tempo e uma doença do mistério da vida. Caras que via habitualmente nas minhas ruas habituais – se deixo de vê-las entristeço; e não me foram nada, a não ser o símbolo da vida.
O velho sem interesse das polainas sujas que cruzava frequentemente comigo às nove e meia da manhã? O cauteleiro coxo que me maçava inutilmente? O velhote redondo e corado do charuto à porta da tabacaria? O dono pálido da tabacaria? O que é feito de todos eles, que, porque os vi e os tornei a ver, foram parte da minha vida? Amanhã também eu me sumirei da Rua da Prata, da Rua dos Douradores, da Rua dos Fanqueiros. Amanhã também eu – a alma que sente e pensa, o universo que sou para mim – sim, amanhã eu também serei o que deixou de passar nestas ruas, o que outros vagamente evocarão com um «o que será dele?». E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos na quotidianidade das ruas de uma cidade qualquer.

Bernardo Soares, Livro do Desassossego

domingo, 9 de novembro de 2008

Breaking Glass (1980)

Com 15 aninhos celebrados há menos de duas semanas, aterrei em Heathrow em 21 de Julho de 1980.
O mundo mudou a partir desse dia, e eu soube-o nessa hora, mas numa dimensão ínfima se comparada com o que disso sei hoje.
Portugal, Lisboa, Massamá em 1980 estavam a anos-luz daquilo que comecei a ver a partir do momento em que o avião tocou o solo. Outro mundo, outra dimensão, em todos os planos. O que aprendi nos dois meses em que lá estive, para o bem e para o mal, moldou-me definitivamente o carácter. Vivendo em casa de familiares lá emigrados, trabalhando ao seu lado nas limpezas de escritórios e lojas ao fim do dia, tinha as manhãs e as tardes por minha conta e a chave de casa no bolso, ao lado das libras dos meus salários semanais. Não fiz tudo o que um puto de 15 anos poderia ter feito naquelas circunstâncias, mas isso só o soube mais tarde. Os meus horizontes eram limitados e a cidade era minha até onde pudesse ir a pé ou de autocarro ou metro sem correr o risco de me perder.
Talvez um dia continue a escrever esta história, entrando nos pormenores. Hoje, lembrei-me desse Verão, porque me lembrei dos dois discos - sim, só dois LP! - que de lá trouxe, comprados em Oxford Street: «McCartney II», acabadinho de sair e gravado pelo ex-Beatle praticamente em casa, e «Breaking Glass», primeiro trabalho de Hazel O'Connor e banda sonora do filme homónimo no qual ela é protagonista, película essa que só chegaria a Portugal, salvo erro, quase dois anos depois.
Em 80, dizia-se que o 'punk' tinha morrido, mas o que eu vi em Londres não foi nada disso.
Em 80, a 'new wave' amadureceu e vingou pelo menos meia década.
«Breaking Glass» é 'new wave' mas 'punk'. Não é uma referência para os entendidos, mas influenciou-me talvez mais do que qualquer outra coisa que tivesse ouvido até então.
E, entretanto, 28 longos anos depositaram-lhe muitas camadas arqueológicas em cima.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

O simples é belo

Esta é a versão d'«O Mundo da Criança».
A mais antiga que conheço (e de que gosto mais) está em:
http://www.youtube.com/watch?v=NcSgW1tBYrg#

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Ocaso

"Anoitece. Não há dúvida, anoitece.
É preciso partir, é preciso ficar."
Eugénio de Andrade
A ti, inevitavelmente, volto e sempre voltarei. Estás presente, de pedra e cal, nas minhas memórias mais antigas e mais queridas do tempo em que, corria, saltava, escalava, nadava, pescava, nos teus domínios e sob o teu atento olhar protector. Ainda eras farol nesse tempo. Lembro-me de a Dona Augusta sair de casa com um garrafão de petróleo, ao fim do dia, para acender a chama que toda a noite orientaria a navegação. Lembro-me de ela continuar a fazê-lo com o teu primeiro substituto. Já não existe nenhum deles. Tu subsistes, resistes, adaptado a candeeiro.
Sejas o que fores, quando a noite se aproxima, cansada de galgar meio mundo de terras e terras, és tu quem lhe dá as boas vindas ao mar e lhe desejas sorte para a longa viagem. Ficaste sempre, desejando partir. Apenas em sonhos, apanhas a boleia da noite e vais com ela por esse mar fora atrás do sol que vos foge sempre. Imaginas apenas o que existe para além do horizonte. Mas ouves todos os fins de tarde as notícias que a noite te traz e te grita a correr, antes de se lançar ao silêncio da travessia, e isso basta-te para conheceres o mundo como se o conhecesses realmente.
E é sobre isso que todas as noites conversas com a tua companheira que eterna e ternamente te fita do outro lado da baía, meio escondida pela vegetação que a veste e embeleza para ti. Sobre isso e sobre tantas outras coisas que são só vossas e a mais ninguém dizem respeito.

domingo, 2 de novembro de 2008

The Quest


PORTUGAL SACRO-PROFANO
Vila do Conde

O lugar onde o coração se esconde
é onde o vento norte corta luas brancas no azul do mar
e o poeta solitário escolhe igreja pra casar
O lugar onde o coração se esconde
é em dezembro o sol cortado pelo frio
e à noite as luzes a alinhar o rio
O lugar onde o coração se esconde
é onde contra a casa soa o sino
e dia a dia o homem soma o seu destino
O lugar onde o coração se esconde
é sobretudo agosto vento música raparigas em cabelo
feira das sextas-feiras gado pó e povo
é onde se consente que nasça de novo
àquele que foi jovem e foi belo
mas o tempo a pouco e pouco arrefeceu
O lugar onde o coração se esconde
é o novo passado a ida pra o liceu
Mas onde fica e como é que se chama
a terra do crepúsculo de algodão em rama
das muitas procissões dos contra-luz no bar
da surpresa violenta desse sempre renovado mar?
O lugar onde o coração se esconde
e a mulher eterna tem a luz na fronte
fica no norte e é vila do conde

Ruy Belo,
Homem de Palavra[s],
1970

sábado, 1 de novembro de 2008

oito bolas de pêlo

Descobri com a 'piquena'.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Desassossego



V

(Notícia da morte de Fernando Pessoa. Tantas
vezes ouvi música perto dele no «promenoir»
do Politeama)

Ah! se acontecesse enfim qualquer coisa!

Se de repente saísse da terra um braço
e atirasse uma rosa
para o espaço.

Mas não.

Lá está o sol do costume

com a exactidão
de uma bola de lume
desenhada a compasso...

... sol que à noite continua
a andar em redor
nas entranhas da lua
– que é sol com bolor...

E desde que nasci,
haja paz ou guerra,
nunca vi outra coisa.

Ah! como queres que acredite em ti
– braço que hás-de romper a terra
e atirar uma rosa?

José Gomes Ferreira,
A Morte de D. Quixote
(1935-1936)

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Trovante - Xácara das Bruxas Dançando

ESCONJURO DA QUEIMADA

para recitar enquanto a poção arde e antes de servir aos participantes

Mochos, corujas, sapos e bruxas.
Demónios, duendes e diabos, espíritos dos nevoeiros.
Corvos, salamandras e meigas, feitiços das curandeiras.
Troncos podres e furados, lugar de vermes.
Fogo das Guerras Santas, negros morcegos,
Cheiro dos mortos, trovões e raios.
Orelha de cão, pregão da morte;
Focinho de rato e pata de coelho.
Pecadora língua de mulher má casada com homem velho.
Casa de Satanás e Belzebu, fogo dos cadáveres ardentes
Corpos mutilados de indescentes,
Peidos de cus infernais
Bramido do mar bravo
Barriga inútil de mulher solteira
Miar de gatos que andam à solta.
Guedelha suja de cabra mal parida.
Com este fole levantarei as chamas deste lume
que se assemelha ao do inferno
E fugirão as bruxas a cavalo das suas vassouras
indo-se banhar na praia das areias gordas.
Oiçam! Oiçam os ruídos que fazem
as que não podem deixar de queimar-se na aguardente
ficando assim purificadas.
E quando este preparo, passar pelas nossas goelas,
ficaremos livres dos males da nossa alma
e de todo o embruxamento.
Forças do ar, terra, mar e lume!
A vós faço a chamada:
Se é verdade que tendes mais força que a humana gente,
aqui e agora, fazei com que os espíritos
dos amigos que estão fora,
participem connosco nesta Queimada


quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Dupla inquietação

Era inevitável: quando me ponho a ouvir a música do Zé Mário, vou sempre parar à poesia do Gomes Ferreira (o contrário também acontece, embora menos). Talvez seja a inquietação o denominador comum, ou então os gritos de rebelião, de raiva não contida. Seja o que for, deixo-me escorregar para o meio deles.

XL
(Madrid rendeu-se. Ranjo os dentes.)

Homens: na noite do desânimo
levanto a minha voz
para pregar o ódio.

Um ódio total e violento
a todos os narcóticos
que adormecem a realidade
com neblinas de música.

Ódio às lágrimas mal choradas diante dos poentes,
à alegria das crianças mortas que teimam em rir nos olhos dos velhos,
às noites de insónia por causa de uma mulher,
às flores que iluminam os mortos de alma,
ao álcool da arte-pura-para-esquecer,
aos versos com túneis acesos por dentro das palavras,
aos pássaros a cantarem os perfumes das árvores secas,
às valsas com voos de tule
- e até ao sol
que diminui o mundo
em indiferença de continuar.

Ódio ao mar a modelar deuses
nos nossos corpos feios de tanto se julgarem belos.

Ódio à primavera
- essa mulher voadora
que entra pelas janelas
com asas azuis
para que a nossa dor
pareça preguiça de existir.

Ódio às serenatas que o luar faz do céu à terra,
às pétalas nos cabelos dos fantasmas ao vento,
às mãos-dadas nas sendas brancas dos idílios,
à pele de frio doce dos amantes,
aos colos das mães a embalarem futuro,
às crianças com céus do tamanho dos olhos,
às cartas de paixão a prometerem suicídios (para beijos mais fundos),
às insinuações de paraíso nas vozes de pedir esmola,
às escadas de corda nos olhos das noivas das trapeiras,
às danças a perfumarem de sexo a derrota,
às ninfas disfarçadas em canteiros de jardins,
e aos recantos foscos
onde escondemos a Verdade
em galerias de evasão
- só para que os nossos olhos continuem límpidos
a ignorarem todos os negrumes
com escadas até ao centro da terra.

Ódio ao disfarce, às máscaras, ao «falemos noutra coisa»,
aos desvios, às fontes dos claustros, ao «vamos logo ao cinema»,
aos problemas de xadrez, aos dramas de ciúme, às infantas do fogo das lareiras,
e aos que não têm a coragem
de estacar, pálidos,
com unhas na carne
a olhar de frente,
sem arrancar os olhos,
os caminhos dos mortos sagrados
até aos horizontes onde os homens se ofuscam das manhãs virgens.

Ódio a todas as fugas, a todos os véus,
a todas as aceitações, a todas as morfinas,
a todas as mãos ocas das prostitutas,
a todas as mulheres nuas em coxins de afagos,
para nos obrigarem a esquecer...

Mas eu não quero esquecer, ouviram?
Não quero esquecer!

Quero lembrar-me sempre, sempre e sempre
deste minuto de abismo,
para transmiti-lo de alma em alma,
de treva em treva,
de corvo em corvo,
de escarpa em escarpa,
de esqueleto em esqueleto,
de forca em forca,
até ao Ranger do Grande Dia
para a Salvação do Mundo
sem anjos
nem demónios
- mas só homens e Terra.

José Gomes Ferreira, in Heróicas (1936-1937-1938)

terça-feira, 28 de outubro de 2008

domingo, 26 de outubro de 2008

Noites Lisboetas (I)

Faz hoje dez anos que nos deixaste as noites mais vazias. Queria ir hoje ao Clínica Bar, sentar-me ali no segundo ou terceiro tamborete, acender um cigarro e, se o "enfermeiro" Rita ainda for o bar tender, pedir-lhe:
- Rita, dê-me um duplo do do Cardoso Pires.
Bebi contigo meia dúzia de vezes debaixo desse tecto, sem nunca te ter dito mais do que o «Boa Noite» para a geral, mas os nossos olhares cruzaram-se cúmplices no reconhecimento mútuo dos iniciados em sociedades secretas: os teus sinais de grão-mestre da escrita e os meus de aprendiz da leitura.
Li pouco do que escreveste.
Li O Delfim há tanto tempo que, prometo-te, vou lê-lo outra vez um dia destes, de tal modo se fundiu no fundo da memória com outros textos.
A Balada da Praia dos Cães, essa de vez em quando é "relida", principalmente quando passo em certas zonas da cidade. Nunca, Zé, nunca mais pude passar na Rua da Madalena sem que me lembrasse de ti. E é para lá que vamos agora...

Bazar Ortopédico

Elias no Largo do Caldas: Neste largo apeou-se ela do táxi.
Ela é Mena no Inverno, três meses atrás, e não numa manhã como esta perfilada de sol. Viajou de autocarro desde a Casa da Vereda até ao viaduto Duarte Pacheco, última paragem à boca da cidade, e aí meteu a Campo de Ourique à procura dum táxi. Impermeável escorrido, lenço colado à cabeleira falsa, a ver passar pára-brisas. Elias faz ideia do desespero que não deve ter sido para ela essa manhã: é mais fácil enfiar um autocarro pelo cu duma agulha do que entrar num táxi em dia de chuva.

[«A respondente», lê-se nos Autos, «efectuou o percurso em conformidade com as instruções recebidas (...) em Lisboa, fez-se transportar de táxi até ao Largo do Caldas e dali prosseguiu a pé até ao escritório do dr. Gama e Sá, na Rua do Ouro, onde chegou por volta das dez e trinta horas da manhã»]

tendo evitado, como admite Elias, a Rua da Conceição, já que a Rua da Conceição é como toda a gente sabe a rota obrigatória dos moscardos entre a central da Pide e os curros da cadeia do Aljube. Légua da Morte, poderia chamar-se àquelas centenas de metros que vão das celas à tortura.
Mas Elias não veio ao Largo do Caldas para reconstruir os passos de Mena na manhã em que ela fez a primeira visita ao advogado. Dirige-se para lá, é certo, chegou a sua vez de apalpar a palavra do Ilustríssimo Gama e Sá, mas se passou por ali foi porque de casa para a Rua do Ouro o Caldas lhe fica em caminho de diligência, como se diz em serviço. Está-lhe ao pé da porta, sabe esse largo de trás para diante e de diante para trás, o largo com a barbearia duma só cadeira e espelho de moscas, com os marceneiros de meia cancela que nunca se vêem, só se ouvem, e com o casarão das janelas trancadas onde à noite anda uma luzinha a passear lá dentro. Numa manhã de sol como esta o casarão tem fatalmente um friso de pombas emproadas ao correr do telhado mas não vale a pena olhar, é sempre aquilo. Do outro lado é que sim, do outro lado, Rua da Madalena a descer, é a feira dos ortopédicos. Aí nunca falta que ver nem que meditar.

"Hoje, graças à Ciência, podemos reconstituir as partes mortas do corpo humano. Podemos animá-las de energia motora e restituir-lhes as formas e expressões que foram da sua natureza". – Eminente prof. Hasaloff, de Viena da Áustria.

Calçadas a pino, cada loja com o seu carrinho de inválido exposto à porta como se estivesse à espera da ordem de partida para um rally-surpresa. Vistas do cimo da rua, aquelas cadeiras resplandecentes parecem prontas a rolar a qualquer momento pelo plano inclinado abaixo, ganharem velocidade, altura, e desaparecerem como máquinas loucas sobrevoando os telhados da cidade. Ao pôr do Sol recolhem domesticamente, mas ficam as montras iluminadas porque essas são de todas as horas como os sacrários dos ex-votos no caminho de quem passa. Exibem membros articulados, espartilhos dramáticos que lembram palácios de tortura, pescoços de metal, Próteses & Fundas Medicinais. Numa das vitrinas, em molduras de veludo-relíquia, está o professor Hasaloff a proferir as suas palavras redentoras sobre as partes mortas do corpo.
Há também o carro da mão decepada, Elias nunca passa ali sem o olhar. E é fatal, estacionado diante da mesma loja, noite e dia sem arredar uma polegada, lá está o velho e familiar Oldsmobile com o letreiro Bazar Ortopédico / Orçamentos Grátis colado no vidro de trás. E a mão. Há sempre a tal mão pousada no volante, de borracha plástica, morena e quase terrosa e com um pulso peludo que termina num punho de camisa sem manga. Tem tudo, a mão, rugas, unhas, pêlos implantados nos poros; no dedo próprio vê-se uma aliança de casamento.
Elias verifica invariavelmente: os pneus do Oldsmobile estão cheios, a carroçaria sem as poeiras crestadas dos carros abandonados. Dá ideia que viaja sem ninguém se poder aperceber, que se desloca a horas misteriosas e por sítios inconfessáveis, conduzido pela mão decepada. E quando se passa ali, lá está: parece um daqueles heróicos automóveis dos caixeiros-viajantes dos outroras poeirentos que percorriam as províncias escalavradas, orgulhosos das mercadorias que transportavam. Ortopedias, orçamentos grátis. E a mão, que afinal é oca e podia ser uma mão-luva para revestir outra mão de carne com os mesmos pêlos, as mesmas unhas e os mesmos poros, a mão continua sem corpo mas fiel ao seu posto. Colocada sobre o volante como um selo de posse: O Oldsmobile é dela.
Nos acasos de Elias pelo Largo do Caldas há sempre este ponto obrigatório, a mão. Depois descerá ao Rossio, Restauradores, Parque Mayer, ou em inverso, rumo ao Tejo. Assim vai hoje, Rua Augusta abaixo. Semáforos e montras, filigranas, souvenirs, change-exchange, manequins e imponências bancárias, e bem no fim levanta-se o triunfal arco de pedra, porta da capital e o Tejo, todo em glória barroca e a irradiar bênçãos sobre o trânsito e o comércio, Ad Virtutem Maiorum. Bem no alto está o relógio solene, governo dos cidadãos, dez horas e trinta minutos. Estamos chegados.
Elias faz uma pausa de esquina para arrumar as ideias? O advogado fica a dois passos, só tem que virar à Rua do Ouro e entrar na primeira porta com engraxador.
Vão de escada com cavalheiros a lerem o jornal em tribunas de engraxador, cheiro a pomadas de cabedal, uma escada de madeira velha, é ali. Sobe por entre paredes de estuque suado, com o barulho da rua a escoar-se atrás dele, degrau a degrau, os pregões da lotaria, os travões dos autocarros, os panos de sacar brilho a estalarem no verniz do calçado. E quando é recebido lá em cima vê-se noutro mundo, maples de couro e silêncio alcatifado; sente-se um perfume morno, perfume de charuto, e a sala é de portas almofadadas, sombras a talhe doce. Elias está sentado diante duma mesa de mogno, numa extensão austera que ele atravessa com o braço para apresentar um documento:
Trata-se desta carta, senhor doutor. Saber se vossa excelência reconhece a letra e a assinatura.
Do outro lado despontam duas mãos vagarosas; brancas e lisas, despendem brilhos. Anéis, unhas envernizadas. Mais em cima uma gravata a tremular em seda, e todo o peito, que é imenso, resplandece contra o espaldar do cadeirão. Por último a cabeça: óculos a faiscar, pele luzidia, barba polida a after-shave e a toalhas de vapor.
Advogado Gama e Sá: Parece de facto a letra do major Dantas Castro. Lê e relê a carta. Sem pressas. Apalpando o queixo.
Elias Chefe: A carta é dirigida ao advogado de defesa e remetida de Paris.
Estou a ver, estou a ver, acena o advogado enquanto lê.

sábado, 25 de outubro de 2008

Lisboa de sempre

Tanto e tão pouco para dizer de nós.
Por mais que tente fugir-te, és lastro para a viagem.
Por mais que tente abraçar-te, és vento que foge para o mar.
Lembras-te da aurora da nossa vida?
Lembras-te de descermos ao longo dos carris e de nos cruzarmos com as varinas que subiam ao bairro mais alto?
E dos rios de verdura - ploc, ploc, ploc no alcatrão - que desaguavam na Ribeira?
E das sandes de fiambre, prémios de consultas e análises de valentia?
Dos regressos a uma casa que se deslocou para longe?
Do amor vertido em ódio por te perder?

* "Roubei" esta foto ao Yanneck, lá no «Olhar Macro» (eu avisei, não avisei?)

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Agora, o livro

Quem cá vem já terá reparado, lá na «Rodinha» dos blogues, no peculiar anterozóide.
Como muitos dos poucos que por aqui passam são docentes de algum nível de ensino, certamente conhecem alguns dos 'bonecos' do Antero, que têm corrido meio mundo.
Alguns privilegiados viram (e vêem) o nascimento de muitos deles, na sequência de tantos outros que, ao longo dos anos, o Antero tem vindo a compor naqueles caderninhos de capa geralmente preta que pertencem à sua indumentária, tal como as calças ou os sapatos. Primeiro, só nós, na ESC, e alguns outros amigos tivemos direito à coisa. Depois, nos e-mails da malta, começaram a aparecer, cada vez com mais frequência. Em seguida, há quase dois anos, a publicação no blogue criado ad hoc. Mais recentemente, o interesse manifestado pelos editores do Escola Informação (SPGL), boletim no qual passaram a figurar. E agora, finalmente, o livro, que está a ser pensado e que, um dia destes, ali para os lados de Odivelas, vai ver a luz.
Nihil obstat, amigo, antes pelo contrário, venha ele antes que seja tarde e já não haja liberdade suficiente nesta terra para rirmos à vontade - se já nos roubaram o prazer de, enquanto fumávamos os nossos "cigarrinhos de intervalo", te acompanharmos na criação da bonecada, já não deve faltar muito para o resto.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

arca de noé 2 - galinha d'angola [ney matogrosso]

Bem podia hoje ter ido ao Coliseu ver o Ney. No princípio, não gostava, mas fui aprendendo com o tempo a apreciar, até que um dia fui ao Coliseu vê-lo. Talvez tenha sido o melhor ESPECTÁCULO que vi naquela ou em qualquer outra sala. Quem puder, vá lá amanhã.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Pedido de desculpa

A quem de direito, venho pedir desculpa por ter retirado o último post. Os vossos comentários não se perderam, ficaram gravados na minha memória.

sábado, 18 de outubro de 2008

Passos em volta dos passos em volta

Acordas às quatro da manhã, vês o breu e ouves o silêncio.
Ninguém.
Nada.
«Estou sozinho no mundo... Desapareceram todos... Para onde?»
Levantas-te.
A meio do cigarro fumado à janela da cozinha, outro noctívago surge, pé ante pé (ou pata ante pata?), cabeça baixa e pescoço esticado, em felina aproximação de caçador à presa.
«Não desapareceram todos. O gato da vizinha do rés-do-chão voltou a fugir e vai errar pela noite dentro.»
Assinala a tua presença. Altera a rota e aproxima-se. Pára. Senta-se, enrolando egipciacamente a cauda à volta dos dois pares de patas (ou de pés?) entretanto acomodados em quarteto, e fixa-te, imóvel e silencioso.
Fuma contigo o resto do cigarro, sem mover um músculo, sem esboçar o mais ténue movimento, envolto pela noite queda e pesada, sem lua e sem brisa.
– Eh, gato doido! Eh, bicho!
Esfíngico. De tal modo se habituou já às tuas pseudotoureiras provocações que, qual velho touro sabido, não se afasta “das tábuas”, confiante e cúmplice, no seu bem ensaiado papel de interlocutor silencioso destes diálogos a uma só voz.
Fim do cigarro.
Abres o frigorífico e retiras, para ti, uma água com gás, para ele, a última salsicha do frasco. Nem o projéctil arremessado aos seus pés (ou patas?) lhe provocou qualquer reacção por reflexa que fosse. Só quando se ouviu o silvo resultante da abertura da cápsula que aprisionava o carbono no interior da garrafa verde a sua cabeça se moveu na direcção da francofortesa.
Acendes outro cigarro, que, lenta mas avidamente, fumas enquanto ele vai mordiscando aquele maná, caído do céu da janela, que ‘bem podia estar menos frio’.
Cai do plátano uma folha, lentamente.
De longe, por entre o labirinto de betão, começa a chegar o som metálico e ritmado da passagem de um quase infinito comboio de mercadorias.
«Há mais gente acordada!»
Já não se ouve o comboio.
Salsicha comida. Limpeza de bigodes.
Cigarro fumado. Água bebida.
Fechas a janela, enquanto ele reinicia a ronda.
Deitas-te, insone.
«Para ler, tenho de ligar o candeeiro, mas não me apetece luz. Música... mp3. Concerto de Brandemburgueses, n.º 1, de João Sebastião Bach!»
O diálogo agora tem já duas vozes, nenhuma delas a tua: as duas linhas melódicas que vão evoluindo, cada qual em seu naipe, de sopro ou de cordas, num jogo de sedução que oscila entre a subtileza e a exuberância.
Subitamente, fim do andamento.
Fim também da pilha do mp3.
O silêncio alia-se novamente ao breu e voltam, ambos, a envolver-te.
Bem abres os olhos e apuras os ouvidos, mas...
Nada.
Ninguém.


*Mote alheio para estas minhas voltas: «Estilo», o primeiro texto de Os passos em volta (1963), de Herberto Helder.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

17 de Outubro de 1935

7 dias antes: estreia, na Broadway, a ópera Porgy and Bess, de George Gershwin

3 dias depois, Mao Tse Tung e as suas forças comunistas terminam, em Yan'an, Shaanxi, a "Grande Marcha"



Faz hoje precisamente 73 anos que, em Dornelas, uma pequena aldeia rural do concelho de Aguiar da Beira, distrito da Guarda, nasceu o meu pai. Hoje, o dia é todo teu, pai.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Domingo

Sobre o Mário Viegas, escreverei um dia. Hoje, apetece-me dar os parabéns (já uns minutos atrasados para o dia 15) ao Manuel da Fonseca, escritor por quem sempre senti uma ternura especial e que, se ainda estivesse vivo, completaria hoje os 97 anos que espero o meu tio-avô Joaquim possa vir a celebrar daqui a um mês. Lembro-me de um dia o ver na Feira do Livro a autografar livros e de ter sentido uma enorme vontade de chegar perto dele e lhe beijar a careca como se do meu avô se tratasse. Ainda hoje me arrependo de o não ter feito. Lembro-me de estar um dia a almoçar, no ano do meu estágio, quando a notícia da sua morte me apanhou de surpresa, e de ter chorado e sofrido como se tivesse perdido alguém muito próximo. De tal forma que a minha mãe chegou a pensar que eu estava doente. Vou-o lembrando a algumas pessoas. É raro o ano lectivo em que, mesmo fora dos programas, eu não leia com os meus alunos um qualquer texto seu. «O vagabundo na esplanada» é quase incontornável - os miúdos percebem e gostam. Mas quase nunca levo para as aulas a sua poesia, que também me diz muito, mas que - pelo menos alguma - não consegue livrar-se das marcas do tempo da resistência (cantada pelo Adriano, pelo Lopes-Graça e outros). Mas acho este poema lindíssimo e quis partilhá-lo convosco.

domingo, 12 de outubro de 2008

Natureza Viva

Who framed ya?

spain - the blue moods of spain

Difícil de encontrar, foi o que se arranjou...

Caminho de volta

sábado, 11 de outubro de 2008

E pur si muove...


- Não, não vou sair daqui. Sei lá o que me pode acontecer se me deixar ir!

MG8 rythm


Contra(mão)

A Clarice é que tinha razão quando disse: "Os sinais estão tantas vezes no lugar errado, tantas!"

O bem do mar

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Sonho

31Ó rei, tu tiveste uma visão. Eis que uma grande, uma enorme estátua se levantava diante de ti; era de um brilho extraordinário, mas de um aspecto terrível. 32Esta estátua tinha a cabeça de ouro fino, o peito e os braços de prata, o ventre e as ancas de bronze, 33as pernas de ferro, os pés metade de ferro e metade de barro. 34Contemplavas tu esta estátua, quando uma pedra se desprendeu da montanha, sem intervenção de mão alguma, e veio bater nos seus pés, que eram de ferro e argila, e lhos esmigalhou. 35Então, com a mesma pancada foram feitos em pedaços o ferro, o barro, o bronze, a prata, o ouro, e, semelhantes ao pó que no Verão voa da eira, foram levados pelo vento sem que deixassem qualquer vestígio. A pedra que tinha embatido contra a estátua transformou-se numa alta montanha, que encheu toda a terra.
Daniel, 2, 31-35

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Born on the Ninth of July

Um, dois, três caranguejos!

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Maré que enche

Hoje à tarde, a maré enchia assim no nosso finis terrae, com toda a força e todo o vigor que são habituais no quotidiano amplexo do mar com a ocidental praia.

* especialmente para a Lady Godiva...

(Nove) Vidas


Quem vier à baía, tem sempre de passar por mim. Espero, no fim da descida, para dar as boas vindas aos que, mesmo sem o saberem, entram nos meus domínios - aqui sou senhor, aqui vivo desde sempre todas as vidas, as minhas e as de quem por cá passa nem que seja apenas um minuto. Vivo os dias longos e as noites frias, as marés baixas e as altas, as calmarias e as tempestades, a fome e a abundância, enfim... a vida deste côvo porto de mar, onde há tantos séculos desembarquei e de onde nunca mais quero zarpar. As saudades que tenho da terra em que nasci já são tão longínquas e insignificantes que se resumem à imagem vaga e difusa do palmar onde dei os primeiros passos na areia escaldante da margem do rio mais antigo de todos. Mas é aqui que vivo a eternidade.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Contra a corrente

Agora é que foi! Não liguei aos outros sinais (nem a este) e agora é tarde: entrei no redemoinho e ando para aqui a nadar contra a corrente...

domingo, 5 de outubro de 2008

Cântico dos Cânticos

Coro.
9 O que distingue dos outros o teu amado,
ó mais bela entre as mulheres?
O que distingue dos outros o teu amado,
para que assim nos conjures?
Ela.
10 O meu amado é branco e corado,
inconfundível entre milhares:
11 Sua cabeça é ouro puro,
a cabeleira é como leques de palmeira,
é negra como o corvo.
12 Seus olhos são pombos,
junto aos cursos de água,
banhando-se em leite,
detendo-se no remanso.
13 Suas faces são canteiros de bálsamos,
tufos de ervas aromáticas.
Seus lábios são como lírios,
a destilar um fluido de mirra.
14 Suas mãos são braceletes de ouro,
guarnecidas com pedras de Társis.
Seu corpo é marfim lavrado,
recoberto de safiras.
15 Suas pernas são colunas de alabastro,
assentadas em bases de ouro.
Seu aspecto, como o Líbano, airoso como os cedros.
16 Sua boca é só doçura; todo ele, pura delícia.
Tal é o meu amado, assim é o meu amigo,
ó filhas de Jerusalém.

Cant., 5, 9-16

sábado, 4 de outubro de 2008

Torrão de Alicante


Descida aos infernos

Sinto-me precipitado para o abismo do beco sem saída! Quem me empurra?



sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Requiem

Morreu hoje Dinis Machado. O seu O que diz molero, que li na minha adolescência com tanto prazer, não foi a sua única obra, mas nenhuma das outras (inclusive os policiais assinados por Dennis McShade) atingiu aquele patamar de excelência. Nunca me esquecerei das personagens Zuca, Peida Gadocha, Tozé Gaguinhas ou Bertinho Ranhoso nem de algumas das cenas mais bem conseguidas numa narrativa despretensiosamente cinematográfica.


“Chegou uma esquadra”, disse Austin, “e aqueles a quem chamavam os camones invadiram a cidade, tingindo-a com a brancura das suas fardas. Meia dúzia deles enfiou pela rua acima, passou pelos Vai ou Racha, estes cuspiram para o chão em sinal de desprezo, o Zuca foi atrás deles de braço estendido, esfregando o dedo polegar no indicador, eh, camone, money, money, um camone atirou um monte de moedas ao ar e a miudagem lutou bravamente para apanhar o dinheiro”. “Essas excursões a bairros desconhecidos desvendam mundos novos”, interrompeu Mister DeLuxe. “Fiz duas ou três desse género e tirei excelentes fotografias”. Austin sorriu. “Bem”, disse ele, “os camones continuaram a subir a rua, pararam junto ao Ângelo, que estava sentado no seu banco de madeira a experimentar a harmónica, um deles aproximou-se e disse girls, e fez com o braço o movimento respectivo, we want girls, o Ângelo disse girl é a tua mãezinha, estás a perceber ou precisas de explicador?, sim, a tua mãezinha, o camone riu-se para os outros, um deles avançou e fez uma espécie de passe à Fred Astaire, conta quem sabe, e de repente o Ângelo já tinha guardado os óculos e a harmónica no bolso, começou a despachar os camones, enfiou um pela loja de móveis do Ventura, outro foi cair numa das cadeiras da Barbearia Hollywood, exactamente em cima do Pimentel, que estava a ser escanhoado pelo Joaquim Navalhinhas, um terceiro mergulhou no tanque de roupa da Miquelina Fortes, outro ainda foi também remetido para a loja do Ventura, encontrou o primeiro no caminho, vinha de regresso, e estatelaram-se os dois numa cama de casal, o Ângelo com os pés, com as mãos, com a cabeça, vai disto, os camones enfiavam por tudo quanto era porta, positivamente distribuídos ao domicílio, o Zuca diria mais tarde que Ricardito entre Chamas e Bandidos, a sua fita número um, ao pé daquilo não era nada. A certa altura, com os camones, estóicos a irem e a virem, os Vai ou Racha começaram a subir a rua, meteram-se no vespeiro, foi o Pé de Cabra que disse chegou a hora, o Padeirinha ouviu a frase histórica e havia de transmiti-la mais tarde, nunca se chegou a saber a que hora se referia ele, também não se chegou a saber se tencionavam ajudar o Ângelo que de resto, segundo Molero, conta quem sabe, se havia alguma coisa de que ele precisasse não era com certeza de ajuda, ou ajudar os camones, ou apartá-los, simplesmente o Ângelo começou também a despachar os Vai ou Racha, o Gil Penteadinho deu duas voltas no ar e foi aterrar na carroça das couves do Hipólito, o Tonecas Arenas ficou sentado no primeiro andar do andaime de um prédio que estava a ser pintado, entornando uma lata de tinta cor de rosa sobre o príncipe-de-gales novo do Joca Farpelas, isto depois de passar pela banca de peixe do Zeca Trampa, espadanando carapaus e lulas por todos os lados, o sombrero, esse, voou e entrou pela janela do segundo andar da Dona Ermelinda, o Bexigas Doidas, que quase tinha sido atado pelo Ângelo a um camone, conta quem sabe que fez nó com o braço direito de um e a perna esquerda do outro, entrou com ele sem pedir licença pelo Ás de Espadas, Lda., levaram ambos consigo o Rufino, o Aranhiço, o Roque Sacristão e o Vovô Resmungas, que estavam a jogar à sueca, saíram todos um pouco à balda pela porta do fundo, acrescentados do Douglas Fazbancos e do Chico Dominó, que estavam ali a discutir o Sporting-Benfica do domingo anterior, o Pé de Cabra foi de cabeça contra a parede e até fez eco, abriram-me a cabeça, dizia ele, abriram-me a cabeça, o que, segundo Molero, devia ser por demais evidente, o Peito Rente foi chutado com efeito para a tipografia do Celestino, deu duas voltas lá dentro fazendo parar máquinas que estavam a trabalhar e pondo a funcionar máquinas que estavam paradas, alguém tinha espetado uma faca na barriga do Lucas Pireza, talvez um camone, de certeza que foi um camone, diria mais tarde o Zuca, os camones são uns naifistas do caneco, garantia ele, o Lucas Pireza segurava os intestinos com as mãos, falava baixinho para eles, parecia rezar, os camones iam e vinham, espartanos, segundo Molero, até à medula, a certa altura, numa ressaca, levaram com eles, pelo ar, o Metro e Meio, o Ângelo tinha-os juntado a todos num molhinho, enfeitou-os com o Metro e Meio, e vai disto, tudo pelo ar, rumo ao Marocas Papa-Milhas, que tinha uma motocicleta cheia de cromados, e a mania das curvas rápidas, já tinha atropelado três gatos e duas pessoas, ia a fazer uma bela curva naquele momento, foi contemplado com a colecção de camones coroada com o Metro e Meio, despistou-se, disse foda-se, foda-se, subiu o passeio, virou de pantanas o mostruário do Raúl Pechisbeque, choveram colares de vidro, pulseiras, broches e anéis, o Marocas continuou em prova descontrolado e tudo, devolveu para dentro de casa o berço que a Gertrudes tinha colocado à porta com o bébé, atravessou a rua aos ziguezagues, embateu na caixa da criação da Mafalda Capoeira e terminou a prova contra o balcão da carvoaria do Galego, lançando o pânico nos elementos do Grupo Excursionista Moscatel, que estavam a beber o meio litro da praxe, enquanto as pessoas assomavam alvoroçadamente às janelas, as mulheres gritavam, o bebé da Gertrudes, que era o melhor pulmão lá do bairro, berrava como nunca, o papagaio do Pimentel, que tinha caído do poleiro e dançava suspenso na correia de metal, esganiçava a sua expressão preferida, ó da guarda, ó da guarda, muitíssimo apropriada, segundo Molero, às circunstâncias, o Fox Terrier do Silva Farmacêutico filava um camone pelo fundilho das calças e fazia questão de não o largar, as galinhas da Mafalda Capoeira corriam espavoridas num cacarejar infernal e num dilúvio de penas, o burro do Hipólito zurrava, os gatos da dona Maria Bicharoco miavam e pulavam, o Alsácia do Tó Peneiras ladrava com aquela fúria só dele, camones entravam por aqui, ex-Malhoas saíam por acolá, às vezes dava certo, parecia que o Ângelo tinha controle sobre a confusão, à distância, o Zuca diria mais tarde que, tirando algumas partes cómicas que pareciam à Charlot, aquilo tinha sido uma coisa iglantónica, o Ângelo era igualzinho a um tal Lone Ranger, só lhe faltava a mascarilha”. Houve uma pausa. ”o rapaz assistiu a tudo isto dentro da mercearia do João Azeiteiro, atrás de um saco de feijão, atónito perante aquilo que Molero denomina o maior fogo de artifício de que há memória em matéria de pancadaria, a balbúrdia plena, o filme de trinta e uma partes em carne viva, o real que se sobrepõe ao mítico, sonhar é pouco, é entrar rapaziada, é entrar, eis a maior zaragata de todos os tempos, resolvida numa só sessão e sem ser preciso comprar bilhete, sem cenários de cartão, sem trucagens, sem intervalo segue imediatamente, cabeças, pernas e braços indiscutivelmente partidos, a cara do Pé de Cabra tapada pelo sangue que lhe escorria da cabeça, o Lucas Pireza transportado para o hospital na carripana do Bigodes Piaçaba, os intestinos enfiados outra vez na barriga um pouco à pressa, os camones espalhados pela rua, as mulheres a trazerem bacias de água e toalhas para limpar os feridos, as acusações mútuas, ó camone porque é que não vais jogar à porrada para as tuas streets?, não foram os camones, foi o Ângelo, o Ângelo é que começou logo a enfardar, isto foi coisa dos Vai ou Racha, os Vai ou Racha e os camones juntos são a lepra e a diarreia, as lágrimas e os gemidos, Vovô Resmungas de bengala no ar a despontar à esquina ao colo do Roque Sacristão, a Mafalda Capoeira a correr atrás das galinhas, o Zeca Trampa a procurar lulas e carapaus nas couves do Hipólito, o Metro e Meio a vomitar coisas de cores esquisitas, esverdeadas e lilases, o Celestino a dizer ao Peito Rente mas tu não podias foder o material a outro?, o Tonecas Arenas a pedir para o ajudarem a sair do andaime, o Joca Farpelas de casaco na mão a chamar de filho da puta para cima a toda a gente, o Gil Penteadinho à procura do dente de oiro, se virem um dente de oiro é meu, o Pimentel à porta da barbearia com meia barba por fazer e o guardanapo ao pescoço, a Gertrudes com o bebé ao colo, alternando, num tom de voz claramente diferenciado, o ó papão vai-te embora, deixa dormir o menino, com o cambada de malandros, cambada de malandros, o Raul Pechisbeque a recolher, de nariz no chão e no boné de um dos camones, pedrinhas coloridas, colares, broches e anéis, o Silva Farmacêutico a tentar tirar da boca do fox-terrier os fundilhos das calças do camone, os Moscatéis a perguntarem ao Marocas se a carvoaria era uma pista de corridas, o Marocas a coxear e a dizer foda-se, foda-se, não mexam na mota, não mexam na mota, o Tó Peneiras rua abaixo em grande velocidade agarrado à trela do Alsácia que perseguia um dos gatos da Dona Maria Bicharoco, o Ventura dos móveis a explicar a um camone que a bed estava partida, o camone a contar com os dedos os galos que tinha na cabeça, o Zeferino Torrão de Alicante a dizer que desta vez ainda tinha sido melhor do que com os ciganos, o Chinês a dizer que sim com a cabeça, o carro da polícia a chegar, o Joaquim Navalhinhas a perguntar mas o que é que a polícia vem fazer agora?, vem contar os mortos?, o Ângelo a pôr os óculos e a desaparecer, o Zuca havia de dizer mais tarde que ele desaparecera no ar como o Mandrake, a Dona Ermelinda a devolver o sombrero do Tonecas Arenas pela janela por onde tinha entrado, o sombrero a descrever uma curva larga, planando e caindo suavemente aos pés do Dick Tracy, que era o polícia à paisana lá da área, e o Dick Tracy, segundo Molero, conta quem sabe, de sombrero na mão, a perguntar a toda a gente e a ninguém: o que é que se passou?, o que é que se passou?, o que é que se passou?..."

* "Roubei" a foto no «Portal da Literatura» e não tive de 'carregar' o texto porque o pedi emprestado a «O Funcionário Cansado» (mas corrigi-o eu em algumas imprecisões - deformação profissional?)

Sentido(s) Obrigatório(s)

Pior do que ter de escolher entre dois caminhos - geralmente o do Bem ou o do Mal! - é ser-se obrigado a seguir pelos dois ao mesmo tempo...

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Sentidos Proibidos

Agora que entrei na alegria não me proíbam os sentidos!

terça-feira, 30 de setembro de 2008

domingo, 28 de setembro de 2008

Agarrado à vida


Não tenho grande jeito para fotografar – a mão treme-me talvez demasiado (sempre são vinte e tal anos de tabaco!) e o equipamento também não é grande coisa. É, por exemplo, a principal razão para ter tão poucas fotografias da minha pequenita. Mas, já que estava lá no Sul, e aproveitando o facto de o Verão já ter viajado e ter levado com ele a multidão com a qual nos meses de Júlio e de Augusto partilhamos o nosso torrão (de areia e mar), resolvi fazer algumas experiências nos espaços agora (quase) vazios.
Saí, decidido, para a rua (mas sem a “carteira castanha” do Tê/Veloso) e comecei a aproveitar a (pouca) luz da tarde já avançada. Resolvi ir pelo Largo, pois duas horas antes tinha conseguido uma foto sem absolutamente vivalma (tinha começado a chover!) e queria ver o que se passava a esta hora. Como o Sol tinha, ainda que timidamente, voltado, muita gente povoava a pequena praça. «Sigo já para o Espingardeiro», decidi. Contornando o chafariz como se de uma rotunda se tratasse, encaminhava-me para o antigo caminho da floresta, quando, num dos bancos do topo nordeste – onde não é costume –, vejo sentado o último dos Montinhos, o meu tio-avô Joaquim.
– Boa tarde! ‘Tá bom, Ti Joaquim?
– Olá, ‘tá bom? Quem...?
– Sou o Vítor... (o tio Joaquim viu sempre pouco, e agora então...)
– Ah, o Vitro... então o teu pai, está melhor?
– Vai mexendo mais... há bocado conseguiu vir aqui ao Isménio tomar café... mesmo na hora em que choveu...
– As nhas moças já me disseram que choveu, mas ê nã di notíiça...
– Eram para aí três horas, três e um quarto. Se calhar, estava a dormir a folga?!
– Pois... (sorrindo) ‘tava...
– Então e como é que tem andado?
– Olha, com quatro pernas! (com um gesto de doce amabilidade para com elas, apresenta-me, pousadas cada uma ao longo de uma das suas pernas estendidas, as suas “amigas”, as canadianas de alumínio) Com estas duas novas para ajudarem as velhas, que já estão muito ferrugentas nas dobradiças... tenho os joelhos muito presos... é o que me custa mais...
– Então, tem de andar um bocadinho de vez em quando para olear as ferragens...
– É... é o que eu faço... venho andando desde a casa ‘té aqui e depois sento-me um bocadinho...
– Mas hoje não está no banco do costume.
– Vim andando à pergunta da sombra e parí aqui neste...
– A fazer companhia aos gatos do Chico dos Porcos...
– São malinos! Tão depressa ‘tão dormindo como param quedos!
– Mas o tio e os seus camaradas hoje estão todos espalhados... aquele companheiro já esteve naquele banco e agora mudou para outro... e o outro companheiro hoje tem outra companhia...
– Tarda nada ‘tã-se a juntar...
– Para aqui se calhar hoje não vêm... viram-me aqui consigo.
... isto temos que ir mudando de companha...
– Para variar as conversas.
– As conversas são quase sempre as mesmas...
– Têm de se entreter...
– É... de manhêm vou por aí a baixo ao barbêro... e à tarde venho até aqui um poucachinho falar com os moços... (ri-se) com os velhos como eu...
– O tio agora é o mais velho cá da terra!
– É... agora há aí nenhum mais velho... às vezes, ‘tá aí uma senhora, que casou aí com o ??????, que é mais velha que eu, acho que uns meses... mas ela mora lá para Lisboa, e quando ela ‘tá cá sou eu o mais velho...
– Que idade é que tem agora?
– Se chegar a 21 de Novembro, faço 97...
– Então tem quatro de diferença para a minha avó; se ela fosse viva, já tinha 101, feitos em Março...
– Quatro? Nã sei... é capaz, sim... deve ser mais ou menos isso... ‘tão, a Conceição era más velha qu' eu aí uns dois anos... e a seguir era a Chica, a tua avó... sim... é capaz de ser isso... quantos é que disseste?... 101? Éramos oito e as diferenças duns para os outros eram mais ou menos de dois anos... é capaz, sim... A ‘Delaida era dois anos mais nova qu' eu, e o Toino tinha quase quatro de diferença de mim... Já foram todos... até os mais novos...
– O tio é o último dos Montinhos.
– Pois sou... E também já vive lá ninguém. Raça acabada! Quando vier aí o homem que leva a gente e me levar, acaba-se a raça...
– Ó tio, mas se ele aparecer, convença-o a voltar mais tarde... diga-lhe que ainda queria ver este Natal... e depois, quando voltar, empate-o até à Páscoa... depois, que é só mais um Verão...
Agora cá, que ele já vai nessa conversa. Já o ando a enganar há muito tempo... já ando agarrado à vida há muito tempo!
Entretanto, chegou a Leonor, uma das filhas, e a conversa mudou...
Acabei por ir tirar fotografias já quase de noite, mas ganhei mais uma hora de vida... com o pouco que já resta das minhas raízes mais antigas...
Não fotografei o Tio Joaquim!