quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Noites lisboetas (II)


A sua retina era ofuscada pela luz dourada da noite que emanava do rosto dela, languidamente deitada no espaldar do banco de jardim, oferecendo-lhe o beijo que não podia ser.
Foi então que ele disse:
– Apetecia-me andar de eléctrico contigo!
Ela descerrou lentamente as pálpebras, e os seus olhos, penetrando profundamente nele, perguntaram porquê.
Ele pegou-lhe na mão, ergueu-se lenta mas decididamente e levou-a consigo, rua após rua, até à praça em que, irradiando luz, o velho americano fazia tempo para iniciar a marcha em respeito pelo horário.
– Ainda o apanhamos! Ainda o apanhamos! – pôde ouvi-lo, do alto do seu cavalo, o Mestre a quem o povo um dia, ali perto, acudiu.
– Para onde me levas?
– Para onde ele nos levar…
– Não podemos…
– Podemos, sim!
E, na praça deserta mas plena de luz, puderam beijar-se, como se não houvera mais mundo.

sábado, 14 de novembro de 2009

Quero ser uma marreta



... I've been feeding the rythm!

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

domingo, 1 de novembro de 2009

O Bom Rebelde



Morreu António Sérgio, um dos últimos verdadeiros "rebeldes" e uma voz inconfundível no éter radiofónico português.
Conheci-o na velha Comercial, quando a desoras ficava acordado para ouvir o Rolls Rock e, mais tarde, O Som da Frente. É claro que lhe devo muitas faltas e atrasos às aulas da manhã, mas devo-lhe mais ainda a visão mais abrangente sobre o mundo da música, o conhecimento de mais mundos além do main stream. Tornei-me leitor assíduo do semanário Portugal Hoje, porque era nele que, todos os sábados, se publicava a Lista Rebelde do Rolls Rock / Som da Frente. Ouvi, com ele, temas e bandas que ninguém mais me proporcionou: conheci bandas israelitas e palestinianas, acompanhei lições semanais sobre as bandas independentes da Costa Oeste dos EUA, segui a evolução do punk britânico depois de dado como morto...

Obrigado, companheiro!

Finados



16 de Novembro


Debaixo destes tectos, entre cada quatro paredes, cada um procura reduzir a vida a uma insignificância. Todo o trabalho insano é este: reduzir a vida a uma insignificância, edificar um muro feito de pequenas coisas diante da vida. Tapá-la, escondê-la, esquecê-la. O sino toca a finados, já ninguém ouve o som a finados. A morte reduz-se a uma cerimónia, em que a gente se veste de luto e deixa cartões de visita. Se eu pudesse, restringia a vida a um tom neutro, a um só cheiro, o mofo, e a vila a cor de mata-borrão. Seres e coisas criam o mesmo bolor, como uma vegetação criptogâmica, nascida ao acaso num sítio húmido. Têm o seu rei, as suas paixões e um cheirinho suspeito. Desaparecem, ressurgem sem razão aparente de um dia para o outro num palmo do universo que se lhes afigura o mundo todo. Absorvem os mesmos sais, exalam os mesmos gases, e supuram uma escorrência fosforescente, que corresponde talvez a sentimentos, a vícios ou a discussões sobre a imortalidade da alma.
Sempre as mesmas coisas repetidas, as mesmas palavras, os mesmos hábitos. Construímos ao lado da vida outra vida que acabou por nos dominar. Vamos até à cova com palavras. Submetem-nos, subjugam-nos. Pesam toneladas, têm a espessura de montanhas. São as palavras que nos contêm, são as palavras que nos conduzem. Toda a gente forceja por criar uma atmosfera que a arranque à vida e à morte. O sonho e a dor revestem-se de pedra, a vida consciente é grotesca, a outra está assolapada.
Remoem hoje, amanhã, sempre, as mesmas palavras vulgares, para não pronunciarem as palavras definitivas. Toda a gente fala no céu, mas quantos passaram no mundo sem ter olhado o céu na sua profunda, na sua temerosa realidade? O nome basta-nos para lidar com ele. Nenhum de nós repara no que está por trás de cada sílaba: afundamos as almas em restos, em palavras, em cinza. Construímos cenários e convencionámos que a vida se passasse segundo certas regras. Isto é a consciência – isto é o infinito… Está tudo catalogado. Na realidade jogamos a bisca entre a vida e a morte, baseados em palavras e sons. E, como a existência é monótona, o tempo chega para tudo, o tempo dura séculos. Formam-se assim lentamente crostas: dentro de cada ser, como dentro das casas de granito salitroso, as paixões tecem na escuridão e no silêncio, teias de escuridão e de silêncio. Na botica sonolenta ao pai sucede o filho sobre o tabuleiro de gamão. Quero resistir, afundo-me. Começo a perceber que o hábito é que me faz suportar a vida. Às vezes acordo com este grito: – A morte! a morte! – e debalde arredo o estúpido aguilhão. Choro sobre mim mesmo como sobre um sepulcro vazio. Oh como a vida pesa, como este único minuto com a morte pela eternidade pesa! Como a vida esplêndida é aborrecida e inútil! Não se passa nada! não se passa nada e eu sinto aqui ao lado a outra vida que me mete medo e que não quero ver! Essa vida talvez seja a minha verdadeira vida. Mas o pior é que eu percebo que, se se apodera de mim, não posso mais viver. Agarro-me com desespero ao hábito e às palavras. Tu não existes! tu não existes! O que existe é isto com que lido todos os dias, as palavras que digo todos os dias, os seres com quem falo todos os dias. – E tu rodeias-me, tu reclamas-me e queres viver comigo para todo o sempre. Não te posso ver!...
(…)
Raul Brandão, Húmus