PRIMEIRA CENA: TEATRO À LA CARTE
Um casal muito bem vestido assim para o moderno, sentado à mesa de um restaurante, a olhar para a ementa. Lançam-se olharzinhos por cima das ementas. Sorriem com ar de circunstância.
ELE: Estás-te a divertir, amor?
Depois de uma pausa, aborrecida de morte.
ELA: Muito, meu tesouro. Imenso.
Risinhos tontos de ambos enquanto se dão a mão.
Chega NÁDIA, com um bloco de notas e caneta, extremamente amável.
NÁDIA: Os senhores já decidiram?
ELE: O que é que te apetece?
ELA: Não tenho bem a certeza… Como é o número cinco?
NÁDIA: Fantástico. Eu recomendo. Política internacional.
ELE: É muito profundo?
NÁDIA: Para mim não…
ELA: O que leva?
NÁDIA: Uma base de análise global, envolta num discurso ecologista light, com molho rosa e reivindicações contratuais. Não é nada indigesto.
ELA: Não. O corpo pede-me uma coisa mais forte.
NÁDIA: O telelixo interessa-lhe?
ELA: Nem por isso.
NÁDIA: E a violência de género? Vem numa moldura de tolerância zero, com laivos de feminismo radical…
ELE: Não, nada de radicalismos. (Para ELA.) Não te cai bem, depois eu fico mal disposto e acabamos sempre a discutir.
NÁDIA: Fora da ementa posso oferecer-lhes terrorismo islâmico, acordos entre patronato e sindicatos – muito divertidos –, apontamentos para um novo conceito de macho ibérico…
ELA: Não tem nada mais pessoal? Qualquer coisa que nos toque mesmo fundo.
NÁDIA: Mais íntimo?
ELA: Que nos emocione.
ELE: Tens a certeza, amor?
ELA: Hoje é uma noite muito especial… E há tanto tempo que não sinto nada…
NÁDIA: A verdade é que já não fazemos o pessoal há muito tempo.
ELA: Porquê?
NÁDIA: Era demasiado catártico.
ELA: Não se preocupe. Catarse é connosco. Ele, para já, é dramaturgo.
ELE: Autor.
ELA: Vai dar ao mesmo.
ELE: Não é bem. O dramaturgo é um criador de linguagens cénicas, que tem as raízes da sua obra imersas na antropologia moderna e na arte contemporânea. O autor não. O autor é um autocrata que se auto-cria numa auto-crítica auto-freudiana a partir de uma autoridade autista, como um autêntico autómato. Não concorda?
Em resposta, NÁDIA continua a sorrir impávida.
ELA: E eu sou actriz. Mas não me conhece porque sou do teatro.
NÁDIA: (Depois de uma pausa.) Fica então para dividirem? O pessoal, quero dizer.
ELA: É muito forte para uma pessoa só?
NÁDIA: Pode gerar ansiedade, confusão e problemas de comunicação…
ELA: Perfeito. É exactamente o que estamos a precisar.
ELE: Está bem. Um pessoal para cada um.
NÁDIA: E para beber?
ELA: Um copo de Borba.
ELE: E uma água sem gás.
NÁDIA recolhe as ementas e vai-se embora.
Escuro.
Antonio Onetti, Nádia ou os anões vão crescendo