quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

O nosso mundo é este

XVI

O nosso mundo é este
Vil suado
Dos dedos dos homens
Sujos de morte.

Um mundo forrado
De pele de mãos
Com pedras roídas
Das nossas sombras.

Um mundo lodoso
Do suor dos outros
E sangue nos ecos
Colado aos passos…

Um mundo tocado
Dos nossos olhos
A chorarem musgo
De lágrimas podres…

Um mundo de cárceres
Com grades de súplica
E o vento a soprar
Nos muros de gritos.

Um mundo de látegos
E vielas negras
Com braços de fome
A saírem das pedras…

O nosso mundo é este
Suado de morte
E não o das árvores
Floridas de música
A ignorarem
Que vão morrer.

E se soubessem, dariam flor?

Pois os homens sabem
E cantam e cantam
Com morte e suor.

O nosso mundo é este….

(Mas há-de ser outro.)

                                        José Gomes Ferreira

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Acaso algo acontece por acaso?



Assim começa Magnolia, um filme que não é de Natal, mas de quando um homem quiser!...

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

11.º Mandamento




«Roubarás para comer, a quem para to vender é certo que te já roubou!»

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

O jardim marinho



Era uma vez um menino que nasceu cego para as coisas da terra. Só via o mar e o que nele havia. Sabia caminhos nas águas, carreirinhos. Dava nome às ondas, de uma em uma. Dizia: a luz nasce do mar e não dos astros. A claridade lhe chegava do azul, ainda molhada e, depois, flutuarejava nos céus.
Andar em terra enjoava-lhe. Tinha temor de pisar em solo firme, de cair no duro chão. Até o verde terrestre lhe incomodava. O menino não sabia tocar as folhagens, ásperas e secas. Plantas, para ele, eram as algas escorregadias e ondulantes.
Quero a minha escola no mar, pai. Em terra não posso.
O pai respondia:
Há-de ser, filho.
A mãe chorava. Como podia ela ter gerado aquele menino, mais a jeito de ser peixe? E a criança, apalpando o escuro, tocava as lágrimas da mãe e acreditava que ela sorria. No seu entender, água seria sempre sinal de felicidade.
A mãe contenta-se. São meus dedos que dizem.
A pobre mulher não respondia. Aquele era seu único filho. Para o sustentar ela tivera que trabalhar na cidade. O dinheiro que o marido retirava das pescarias já não chegava. Nem tão pouco. Os três já eram tantos, mais bocas que braços. Quando ela saía para o trabalho, pelas traseiras da casa, o menino se derramava em total despedida. Como se fosse infinita a estrada.
O pai parecia nem dar conta da estranheza de seu filho. Aceitava. Mesmo decidira puxar a cabana mais para junto da rebentação. Prendas que o miúdo lhe trazia: conchas, búzios, brilhos da maresia.
Será que passa?
Dúvida e angústia da mãe olhando o filho no meio das águas, nadando com despacho de golfinho. Ela sacudia a cabeça, negando-se: em terra o menino não tinha a competência de nem um passo, sequer um. Fora de água, sua visão se apagava. O pai, muitas das vezes, adentrava-se por terra, desafiando o miúdo para vir junto. Mas o filho chorava do escuro onde o mergulhavam.
Com o tempo e como a doença piorasse, a mãe passou a dedicar ódio ao mar. O incansável ruído das ondas já lhe inundava o sono. Ela deixou de dormir, ocupada em sofrer.
Marido, vamos sair daqui. Vamos no interior.
E nosso filho?
Ele se habitua, você vai ver.
Concluía o homem que era impossível, o menino não resistiria. E assim demorou-se o tempo. O menino deu-se de bem crescer, encharcado de azul e sal. Agora, já não era mais criança. Ao fazer do corpo se ajuntava a vontade de ainda mais ser das águas. Um dia, ele:
Devo ir. Eu pertenço lá.
E apontou o oceano. A mãe escondeu dentro um quase alívio. Mas era uma consolação triste, como se fosse o descanso de um parto falecido. Ela já não o ouvia, ele falava qualquer coisa de ser jardineiro, plantar nas ondas.
Não chora, mãe. Eu hei-de passar a visitar.
O pai suspirou um longo silêncio.
Não, filho. Já não vais-nos ver mais. Vou levar tua mãe para longe, ela não pode continuar-se vizinha da água.
Ele dobrou a despedida, perdendo-se no azul inatingível. Os dois velhos ficaram a ver a sua extinção. Quando o Sol ajoelhou a beijar o horizonte, ela pediu ao marido:
Não vamos partir esta noite. Só amanhã.
O pescador, de silêncio, consentiu. Mas, naquela noite, eles não buscaram o aconchego da cabana. Ficaram, sob os ramos da Lua, olhando o escuro abismo por onde o filho desaparecera, ouvindo os seus passos afogando-se na distância.

...................................................................Mia Couto, Cronicando

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

12 segundos de escuridão...




Gira el haz de luz
para que se vea desde alta mar
yo buscaba el rumbo de regreso
sin quererlo encontrar

Pie detrás de pie
iba tras el pulso de claridad
la noche cerrada, apenas se abría,
se volvía a cerrar.

Un faro quieto
nada sería
guía, mientras
no deje de girar
no es la luz
lo que importa en verdad
son los 12 segundos
de oscuridad,

12 segundos de oscuridad
para que se vea desde alta mar
de poco le sirve al navegante
que no sepa esperar.

Pie detrás de pie
no hay otra manera de caminar
la noche del Cabo
revelada en un inmenso radar.

Un faro para,
sólo de día,
guía, mientras
no deje de girar
no es la luz
lo que importa en verdad
son los 12 segundos
de oscuridad,
12 segundos de oscuridad,
12 segundos de oscuridad,
para que se vea desde alta mar.

Jorge Drexler

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Noites lisboetas (II)


A sua retina era ofuscada pela luz dourada da noite que emanava do rosto dela, languidamente deitada no espaldar do banco de jardim, oferecendo-lhe o beijo que não podia ser.
Foi então que ele disse:
– Apetecia-me andar de eléctrico contigo!
Ela descerrou lentamente as pálpebras, e os seus olhos, penetrando profundamente nele, perguntaram porquê.
Ele pegou-lhe na mão, ergueu-se lenta mas decididamente e levou-a consigo, rua após rua, até à praça em que, irradiando luz, o velho americano fazia tempo para iniciar a marcha em respeito pelo horário.
– Ainda o apanhamos! Ainda o apanhamos! – pôde ouvi-lo, do alto do seu cavalo, o Mestre a quem o povo um dia, ali perto, acudiu.
– Para onde me levas?
– Para onde ele nos levar…
– Não podemos…
– Podemos, sim!
E, na praça deserta mas plena de luz, puderam beijar-se, como se não houvera mais mundo.

sábado, 14 de novembro de 2009

Quero ser uma marreta



... I've been feeding the rythm!

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

domingo, 1 de novembro de 2009

O Bom Rebelde



Morreu António Sérgio, um dos últimos verdadeiros "rebeldes" e uma voz inconfundível no éter radiofónico português.
Conheci-o na velha Comercial, quando a desoras ficava acordado para ouvir o Rolls Rock e, mais tarde, O Som da Frente. É claro que lhe devo muitas faltas e atrasos às aulas da manhã, mas devo-lhe mais ainda a visão mais abrangente sobre o mundo da música, o conhecimento de mais mundos além do main stream. Tornei-me leitor assíduo do semanário Portugal Hoje, porque era nele que, todos os sábados, se publicava a Lista Rebelde do Rolls Rock / Som da Frente. Ouvi, com ele, temas e bandas que ninguém mais me proporcionou: conheci bandas israelitas e palestinianas, acompanhei lições semanais sobre as bandas independentes da Costa Oeste dos EUA, segui a evolução do punk britânico depois de dado como morto...

Obrigado, companheiro!

Finados



16 de Novembro


Debaixo destes tectos, entre cada quatro paredes, cada um procura reduzir a vida a uma insignificância. Todo o trabalho insano é este: reduzir a vida a uma insignificância, edificar um muro feito de pequenas coisas diante da vida. Tapá-la, escondê-la, esquecê-la. O sino toca a finados, já ninguém ouve o som a finados. A morte reduz-se a uma cerimónia, em que a gente se veste de luto e deixa cartões de visita. Se eu pudesse, restringia a vida a um tom neutro, a um só cheiro, o mofo, e a vila a cor de mata-borrão. Seres e coisas criam o mesmo bolor, como uma vegetação criptogâmica, nascida ao acaso num sítio húmido. Têm o seu rei, as suas paixões e um cheirinho suspeito. Desaparecem, ressurgem sem razão aparente de um dia para o outro num palmo do universo que se lhes afigura o mundo todo. Absorvem os mesmos sais, exalam os mesmos gases, e supuram uma escorrência fosforescente, que corresponde talvez a sentimentos, a vícios ou a discussões sobre a imortalidade da alma.
Sempre as mesmas coisas repetidas, as mesmas palavras, os mesmos hábitos. Construímos ao lado da vida outra vida que acabou por nos dominar. Vamos até à cova com palavras. Submetem-nos, subjugam-nos. Pesam toneladas, têm a espessura de montanhas. São as palavras que nos contêm, são as palavras que nos conduzem. Toda a gente forceja por criar uma atmosfera que a arranque à vida e à morte. O sonho e a dor revestem-se de pedra, a vida consciente é grotesca, a outra está assolapada.
Remoem hoje, amanhã, sempre, as mesmas palavras vulgares, para não pronunciarem as palavras definitivas. Toda a gente fala no céu, mas quantos passaram no mundo sem ter olhado o céu na sua profunda, na sua temerosa realidade? O nome basta-nos para lidar com ele. Nenhum de nós repara no que está por trás de cada sílaba: afundamos as almas em restos, em palavras, em cinza. Construímos cenários e convencionámos que a vida se passasse segundo certas regras. Isto é a consciência – isto é o infinito… Está tudo catalogado. Na realidade jogamos a bisca entre a vida e a morte, baseados em palavras e sons. E, como a existência é monótona, o tempo chega para tudo, o tempo dura séculos. Formam-se assim lentamente crostas: dentro de cada ser, como dentro das casas de granito salitroso, as paixões tecem na escuridão e no silêncio, teias de escuridão e de silêncio. Na botica sonolenta ao pai sucede o filho sobre o tabuleiro de gamão. Quero resistir, afundo-me. Começo a perceber que o hábito é que me faz suportar a vida. Às vezes acordo com este grito: – A morte! a morte! – e debalde arredo o estúpido aguilhão. Choro sobre mim mesmo como sobre um sepulcro vazio. Oh como a vida pesa, como este único minuto com a morte pela eternidade pesa! Como a vida esplêndida é aborrecida e inútil! Não se passa nada! não se passa nada e eu sinto aqui ao lado a outra vida que me mete medo e que não quero ver! Essa vida talvez seja a minha verdadeira vida. Mas o pior é que eu percebo que, se se apodera de mim, não posso mais viver. Agarro-me com desespero ao hábito e às palavras. Tu não existes! tu não existes! O que existe é isto com que lido todos os dias, as palavras que digo todos os dias, os seres com quem falo todos os dias. – E tu rodeias-me, tu reclamas-me e queres viver comigo para todo o sempre. Não te posso ver!...
(…)
Raul Brandão, Húmus

sábado, 31 de outubro de 2009

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Faróis apagados



Nesta navegação à vista, todos os pequenos pontos de luz que possam servir de referência e ajudar a não encalhar em bancos de areia ou esbarrar contra escolhos são importantísssimos. O que dizer, então, dos faróis? Sem eles, torna-se praticamente impossível rumar a bom porto. Quando alguns deles se apagam, ainda que momentaneamente, a noite fica mesmo mais escura e fria, e a vontade de navegar esmorece. Mas navegar é preciso...

domingo, 25 de outubro de 2009

Valdevinos

Morte de D. Beltrão


– Quedos, quedos, cavaleiros, — que el-rei vos mandou contar,
Falta aqui o Valdevinos — e seu cavalo tremedal;
Falta a melhor espada — que el-rei tem para batalhar.
Não no achastes vós menos, — à ceia, nem ao jantar;
Só o achastes menos — a porto de mau passar.
Deitaram sortes à ventura — a qual o havia d’ir buscar.
Todas sete lhe caíram — ao bom velho de seu pai;
Três lhe caíram por sorte — e quatro por falsidade.
Lá se vai o bom do velho, — o seu filho vai buscar.
Pelos altos vai voando, — pelos baixos procurando,
À entrada duma vila, — à saída dum lugar,
Encontrou três lavadeiras — numa ribeira a lavar.
– Deus vos guarde, lavadeiras, — que Deus vos queira guardar.
Cavaleiro d’armas brancas — viste-lo por aqui passar?
– Esse soldado, senhor, — morto está no areal;
Os seus pés tem sobre a areia — e a cabeça no juncal;
Três feridas tem em seu corpo, — todas três d’homem mortal;
Por uma lhe passa o sol, — pela outra o luar,
Pela mais pequena delas — um gavião a voar,
Com as asas bem abertas, — sem nas ensanguentar.
– Não torno a culpa aos Mouros, — em meu filho matar;
Só a torno ao seu cavalo, — não no saber desviar.
De mandado de Deus Padre — veio o cavalo a falar;
– Três vezes o desviei — e três me fez avançar,
Apertando-me as esporas — alargando-me o peitoral;
Dava-me sopas de vinho — para melhor avançar;
Os muros daquele castelo — três vezes me fez salvar.





Versão de Vinhais, recolhida pelo P.e José Firmino da Silva, 1904 (José Leite de Vasconcelos, Romanceiro Português. 1.º vol., Coimbra, 1958, versão n.º 18, pp. 31-32).

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Caio Múcio Cévola


Ciues Mucium ob cladem manus dextrae «Scaevolam» nominauerunt.

A tradução directa será algo como: «Os cidadãos, por causa da perda da mão direita, chamaram Cévola (Esquerdo ou Canhoto) a Múcio».

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Rio Amarelo

Nos primórdios da "globalização" já o Rio Amarelo passava por Londres...

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Vida em Marte...

Ver original aqui.

domingo, 18 de outubro de 2009

sábado, 17 de outubro de 2009

Dia do Meu Pai


Nem sempre te beijo, quase nunca te digo o quanto te amo, mas tu sabes bem que és para mim tudo o que nunca foram para ti, que tens sabido ser pai sem nunca teres sido filho.
Parabéns, PAI!

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Sir Galaaz

Quedos, quedos, cavaleiros!....
Que el-Rei vos manda contar...
No primeiro momento em que abriu os olhos, as cores e os tons do magnífico arrebol invadiram-no, espalhando no seu espírito uma plena sensação de paz.
Encontrava-se deitado, de costas, no exacto centro de uma bela e verdejante clareira, e o seu olhar maravilhava-se na contemplação da orvalhada aurora que lentamente avançava por sobre a sua existência terrena.
Já acordado, tentou lembrar-se de como chegara até ali, mas pareciam estar bloqueados todos os corredores labirínticos da memória.
Soergueu-se, a custo.
Apesar de o seu corpo não aparentar qualquer mazela, uma sensação aguda de dor o percorreu quando tentou sentar-se. Talvez uma manada em desatino o tivesse cilindrado. Continuava a não se recordar de absolutamente nada.
Viu então o seu belo corcel, que retouçava brandamente a fresca erva entre os fetos cintilantes de pequenas gotículas matinais. A um gesto seu, o fiel companheiro de tantas jornadas inclinou a cabeça na sua direcção, fixando em si aqueles olhos negros e profundos, tão contrastantes com a alvura da sua pelagem.
O olhar penetrante da elegante montada descerrou-lhe, por fim, as portas e as janelas até aí trancadas.
De repente, tudo se fez claro na sua mente.
Na noite anterior, após uma carreira desenfreada, por montes e vales, searas e silvados, tinha finalmente soçobrado e adormecido naquele ameno recanto da grande floresta.
Disso conseguia lembrar-se, mas não pôde precisar se fugia de um terrível perigo ou se, pelo contrário, perseguia algum maléfico inimigo. Vencera, porém, a contenda, ou não estaria ali agora, incólume e cheio de luz por dentro.
Decidiu empreender, sem demora, a viagem de regresso, pois algo lhe dizia que tinha chegado a hora de se sentar na cadeira proibida, no único lugar vago naquela enorme mesa redonda.

sábado, 10 de outubro de 2009

Baladas

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Dark Side...


Não penso que a NASA tenha finalmente conseguido "camoniar" a Lua, pois parece-me que a cratera Cabeus não faz parte do aparelho visual daquele orbe, até porque todos acharíamos estranho que a agência espacial norte-americana, após décadas de investigação e muitos milhões de dólares de investimento, pretendesse apenas vazar uma vista à nossa vizinha do lado.
No entanto, não deixa de parecer absurdo, depois de quase destruirmos o nosso planeta, andarmos agora a bombardear a Lua, ainda que com o argumento da necessidade científica de avaliação sobre a quantidade e a qualidade da água existente no satélite natural que teve a infelicidade de ter ficado encarcerado na nossa órbita e submetido ao nosso destino. Já não nos chega sujarmos a nossa casa, ainda temos necessidade de andar a deitar lixo no quintal do vizinho.
"Ah, e tal... que é preciso... que só assim saberemos se um dia virá a ser possível erigir a - até aqui utópica - base lunar..."
Eu lembro-me de, há trinta e tal anos, ter acontecido uma outra explosão há dez anos, cujas únicas consequências positivas foram a emancipação da Lua em relação à Terra e o leitmotiv para duas ou três temporadas de episódios de uma série televisiva de que a malta quase toda gostava.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Há trinta anos...

No Dia Mundial da Música e para comemorar outra efeméride: Os Mestres & As Criaturas Novas completa hoje o seu primeiro ano de vida.

Era uma vez um cavalo...

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

O Bom Gigante

Era uma vez um gigante que não gostava de ser gigante.
– Chamo muito a atenção – queixava-se ele. – Para onde quer que vá, todos, de longe, apontam o dedo para mim "Lá vai o gigante!" E assustam-se. E abusam do meu nome e pessoa, metendo medo aos meninos: "Se não comes a sopa, chamo o gigante". E espalham disparates a meu respeito, dizendo que eu como gente, sou mau e outras calúnias que tais. Não aturo isto.
Pôs-se a andar de joelhos, a ver se não davam tanto por ele. Qual quê! Um gigante de joelhos, quer se queira quer não, é sempre um gigante, ainda que de joelhos.
Deixou de aparecer. Fechou-se no seu palácio de gigante e nunca mais pôs um pé fora de casa. Mas um gigante escondido, que de um momento para o outro pode aparecer, aterroriza ainda mais a vizinhança do que se andasse sempre na rua.
– Vou mudar de terra – decidiu o desgostado gigante.
Andou por vários reinos, sempre precedido pela sua fama.
– Vem aí o gigante – gritavam.
E todos fugiam.
Até que foi ter a uma terra de gigantes. De gigantões. Todos muito maiores do que ele.
– Aqui é que me convém ficar a viver – disse o gigante.
– Ninguém vai reparar em mim.
Por acaso reparavam. Chamavam-no, nessa terra, de gigantões matulões, chamavam ao gigante desta história de "pitorro", "badameco", "homenzinho", "pigmeu"... Mas ele, que tinha muito bom feitio, não se importava.

António Torrado

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

No fim do Verão...


E com o ocaso deste dia mais um ciclo se cumpriu!

domingo, 20 de setembro de 2009

Amor à primeira vista e outras paixões



Um dia (ou uma noite), enquanto procurava nem sei bem o quê no escaparate de uma discoteca, deparei com um CD que me atraiu o olhar pela beleza da fotografia da capa. Comprei-o imediatamente, disposto a submeter-me à experiência de chegar a casa e ouvir algo completamente desconhecido, sem qualquer tipo de informação sobre o autor ou o género ou o que quer que fosse. Foi uma das mais belas surpresas de toda a minha vida. Apaixonei-me imediatamente por aquele piano e pelos acordes que me oferecia. Como na adolescência de vinil, ouvi o álbum vezes sem conta, ao mesmo tempo que fui mergulhando no libreto para saber quem era este velho de olhar terno e sincero que me ensinava que a base da música cubana era o piano e não qualquer percussão ou jogo de metais. E descobri quem e de que forma o descobrira a ele, Rubén Gonzáles, tocando num piano quase a desfazer-se. E que esse descobridor, o Ry Cooder, descobrira também outras pérolas e as juntara todas num colar. Daí a procurar o CD Buena Vista Social Club foi apenas um passo. Engraçado é que, tendo gostado tanto do disco, oferecesse vários exemplares a alguns dos meus amigos e nunca tivesse comprado um para mim. Foi com um desses amigos, o PS, que, em 29 de Abril de 2000, vivi uma das noites mais mágicas do Coliseu, num dos primeiros concertos que Rubén deu fora da América Latina e, infelizmente, um dos últimos que a sua provecta idade lhe permitiu.

Hasta siempre, compañero!

* Como este é o meu post número 161 e sei que há quem goste de capicuas e similares, decidi publicá-lo em 20.09.2009, às 20:09. Eu sei que a coisa não capicua, mas tem o seu 'ritmo'...

sábado, 19 de setembro de 2009

No Nilo...

Por este rio acima, em direcção ao mar...

Loucura

Há trinta anos, uns loucos davam "um passo mais além"...

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Parabéns!


Com um dia de atraso, um beijo de parabéns para a Lady Godiva no primeiro aniversário do seu Mar Aberto, por onde todos temos navegado com, mais do que agrado, prazer, mesmo que, por vezes, não deixemos vestígios dessas nossas passagens pelas águas - ora calmas e serenas, ora agitadas e revoltas - das imagens e dos sons, mas principalmente das palavras nuas cavalgando a liberdade...

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Saltando ao Brasil, num cavalo índio...

Para a Lady Godiva, serão "Criaturas Novas", mas não desmerecem o Mestre!...

domingo, 13 de setembro de 2009

Cuba, siempre...

Dois velhos amigos meus...

(Rúben Gonzales e Ibrahim Ferrer)

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Hasta luego

Muito provavelmente no Victor's Café não será esta a música cubana que se ouve. Uma das pequenas diferenças entre Nova Iorque e Massamá...

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Fim do fim de férias



Desta vez, o resto - embora não todo - veio também. A grande hora das gaivotas pode, enfim, ter início. A gente vê-se mais logo.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Fim de férias


O corpo já regressou, o resto ainda lá quis ficar...

domingo, 16 de agosto de 2009

Intervalo

A meio das férias, partilho convosco um minuto dos que passei nos últimos dias nos sítios que gosto de também partilhar com os amigos.

Peço desculpa pela má qualidade do filme, mas nem a câmara nem o operador valem grande coisa.

Boas férias!

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Barranco



Os dois minúsculos braços do arroio que hoje teima em desaguar na – assim agora conhecida – Baía dos Pescadores nem ao de leve se assemelham à indelével imagem que em mim perdura do regato que outrora corria para a então por todos chamada Praia do Peixe, como espinha dorsal do barranco, para nós palco de milhentas brincadeiras em tardes infindáveis de verões que pareciam nunca acabar.
Depois das manhãs passadas, em família, na praia, não nos era permitido ali voltar enquanto não terminasse aquele período de três horas reservado à digestão do almoço, o que significaria o desperdício da tarde se não houvesse aquele grupo de amigos da mesma rua e o espaço onde evoluíam as nossas brincadeiras vespertinas.
O barranco era um mundo ao qual eu acedia apenas transpondo a quase sempre aberta porta do quintal da casa dos meus avós. Era só sair e correr barroca abaixo pelos carreiros bem batidos, por entre cardos e piteiras, que me levavam às areias brancas e finas das margens do pequeno ribeiro que sem dificuldade atravessávamos a vau, pois a profundidade máxima oscilava entre a altura do tornozelo e a do joelho.
Lá encontrava o Carlos, que morava na casa em frente à nossa, o Arnaldo e os seus primos, Virgílio e Serafim, que viviam todos em casas do quintal da sua avó Belarmina, que era igualmente avó da minha amiga Paula, vizinha também no resto do ano em Benfica.
A nossa ocupação mais frequente consistia em apanhar pardelhas e pequenas eirozes, por entre as imprecações das mulheres que lavavam roupa em pequenas presas, porque lhes deixávamos a água suja.
As pardelhas geralmente eram levadas para casa e tentávamos, quase sempre sem glória e com alguma miséria, que sobrevivessem alguns dias em aquários improvisados. As mais sortudas eram aquelas que decidíamos atirar aos poços de água doce, pois aí encontravam geralmente um ambiente propício ao seu desenvolvimento e até à sua reprodução.
Já as pequenas eirozes tinham um destino bem mais funesto, pois acabariam enfiadas pela boca num pequeno anzol, servindo de isco na tentativa, as mais das vezes frustrada, de pescar eirozes grandes ou enguias, por meio de um pequeno “aparelho” que armávamos com materiais sobrantes da pesca a sério.
Geralmente, íamos buscar esses utensílios ao grande toldo situado na Praia do Peixe, mesmo em frente ao sítio onde de manhã o pai do Isménio, o sr. Garcia – à época, morando e explorando na mesma casa uma espécie de drogaria onde vendia de tudo um pouco, também na nossa rua –, fazia o leilão do peixe pescado na madrugada anterior, numa lota improvisada nas areias da própria praia, que por essa razão ganhara o nome que lhe dávamos.
Nesse toldo, à tarde, alguns pescadores, num tricotado incessante, remendavam as redes, enquanto outros aparelhavam as nassas para a pesca à lula. Dessas tarefas, sobravam sempre anzóis, fio de seda e pequenas bóias de cortiça, que, com o acordo mal disfarçado de reprimenda, os homens de pele curtida pelo sol e pelo sal nos dispensavam.
Atando o fio de seda, numa ponta, às rodelas de cortiça e, na outra, ao anzol, o qual fazíamos a eiró abocanhar, rapidamente tínhamos o aparelho pronto a ser deixado toda a noite a boiar nas águas do barranco, escondido entre os juncos ou nos canaviais. Na maior parte das vezes, nem os aparelhos conseguíamos recuperar na manhã seguinte, pois, provavelmente, algum viandante mais madrugador, no seu caminho para a rega das cercas, recolhia o produto da nossa faina. Outras vezes, em vez de eirozes, encontrávamos, presas nas nossas armadilhas, cobras de água. Muito poucas eram as ocasiões em que tínhamos a sorte de desaparelhar as verde-azuladas pequenas enguias, que orgulhosamente ostentávamos como se de safios ou congros se tratasse.
Pescadores de água doce com ferramentas do mar, eis o que éramos.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

domingo, 26 de julho de 2009

sábado, 25 de julho de 2009

quinta-feira, 23 de julho de 2009

terça-feira, 21 de julho de 2009

Porquê?

Porque

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

.......................................Sophia de Mello Breyner Andresen

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Onde é que tu estavas... há 40 anos?


Eu estava onde estive ontem: no meu Sul.
Porto Côvo era, então, uma pequena aldeia com apenas três ruas.
Além do, ao tempo, pequeno estabelecimento do recentemente falecido Augusto do Moinho, a que até hoje chamamos Correio, e da padaria do Raul Marta, três casas acima da nossa, apenas meia dúzia de vendas – bem distantes de se transformarem em cafés e restaurantes com pronto pagamento e sem serviço de mesa – tinham já electricidade. Telefones só havia dois - também no Correio e na Padaria. A água já entrava numa dezena e meia de edifícios em canos de chumbo, mas saía pela porta ou pela janela em despejos de alguidar ou balde nem sempre acompanhados do - já então em desuso - "água vai!" As casas de banho, nas poucas casas em que já existiam, consistiam numa sanita, com escoamento para fossas a céu aberto, mas a maior parte dos habitantes fixos e dos ocasionais banhistas dirigia-se à barroca (onde habitava uma comunidade utilíssima de escaravelhos das bolas) e escolhia uma moita para se agachar - chegava a ser local de encontro.
E televisores, quantos existiam lá em 20 de Julho de 1969?
Pelo que me contam, apenas três, em outras tantas casas comerciais, ao descer da rua principal: uma no Abilardo (actualmente, uma pizaria), venda que também alugava quartos; outra, no "café" Hermínio (espaço hoje partilhado por duas lojas), onde na minha adolescência vi muitos filmes que uma Renault 4L transportava e anunciava; a última, na Pensão Abelha (desde há uns anos, uma espécie de loja dos 300), onde praticamente acabava a rua e começava o caminho da Praia Pequena.
Foi nesses três televisores que, lá para as três e tal da manhã, depois de uma noite inteira de expectativa, assistiram à chegada dos primeiros homens à Lua muitos homens da aldeia, entre os quais o meu pai, o meu avô materno e o primo Jacinto, que foram alunando com o aconchego do medronho, de quando em vez refrescado com água "das pedras". Como, depois de jantar, não tinham dito ao que iam, a minha mãe, em casa sem saber o que se passava, pegou em mim e foi procurar o meu pai. E foi assim - disseram-mo há pouco ao jantar - que acabei por assistir ao que o mundo inteiro estava a ver.
Os meus pequenos passos de homem de 4 anos e 11 dias, nessa noite, foram os grandes passos da minha humanidade em construção.

domingo, 19 de julho de 2009

Alerta

Primeiro levaram os comunistas,
Mas eu não me importei
Porque não era nada comigo.
Em seguida levaram alguns operários,
Mas a mim não me afectou
Porque eu não sou operário.
Depois prenderam os sindicalistas,
Mas eu não me incomodei
Porque nunca fui sindicalista.
Logo a seguir chegou a vez
De alguns padres, mas como
Nunca fui religioso, também não liguei.
Agora levaram-me a mim
E quando percebi,
Já era tarde.
....................................................... Bertolt Brecht

sexta-feira, 17 de julho de 2009

domingo, 5 de julho de 2009

Antes e depois de nós


Há umas semanas, regressando a casa depois das aulas, tomei o percurso de sempre, a N250, espécie de CREL de há meio século atrás, que liga Caxias a Sacavém, servindo povoações como Cacém, Belas, Caneças e Loures. É precisamente o troço Belas–Caneças que me possibilita o vaivém diário há quase duas dezenas de anos. Nessa ocasião, tendo "ligado o piloto automático" e navegando entre o Olival do Santíssimo, a estibordo, e a Serra da Helena, a bombordo, ia desenhando as curvas já tão conhecidas e pensando cá nas minhas coisas, quando, num sítio improvável e aparentemente sem razão alguma, o carro que me precedia parou. Reduzindo a minha velocidade até me imobilizar atrás dele tive oportunidade de me aperceber do "obstáculo": uma jovem mãe e sua quase recém-nascida prole, em passo bem marcado e decidido, acabados de sair de uma moita, embrenharam-se num valado, em direcção a uma das primeiras mães-de-água do centenário aqueduto joanino.
Apesar de a mãe perdiz não ter provavelmente muito mais do que um ano de vida, o trilho que seguia é decerto mais antigo do que o milenário aqueduto romano que jaz sob o seu descendente setecentista e, portanto, muito anterior a qualquer N250 ou estrada militar. É claro que, embora se apresentasse pela esquerda, a prioridade de passagem era daquela família: quem atravessava éramos nós. O seu caminho já existia antes de nós e continuará a existir muito depois de nos irmos.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

O Homem Sem Cabeça



Era uma vez um rapaz chamado João que vivia em Chora-Que-Logo-Bebes, exígua aldeia aninhada perto do Muro construído em redor da Floresta Branca onde os homens, perdidos dos enigmas da infância, haviam instalado uma espécie de Parque de Reserva de Entes Fantásticos.
Apesar de ficar a pouca distância da povoação, ninguém se atrevia a devassar a floresta. Não só por se encontrar protegida pela altura descomunal do Muro, mas principalmente porque os choraquelogobebenses – infelizes chorincas que se lastimavam de manhã até à noite – mal tinham força para arrastar o bolor negro das sombras, quanto mais para se aventurarem a combater bichas de sete bocas, gigantes de cinco braços ou dragões de duas goelas. Preferiam choramingar, os maricas!, agachados em casebres sombrios, enquanto lá por fora chovia com persistência implacável (como se as nuvens estivessem forradas de olhos) e dos milhares e milhares de chorões – as árvores predilectas dessa gente – pingavam folhas tristes. Tudo isto incitava os habitantes da aldeia a andarem de monco caído, sempre constipados por causa da humidade, e a ouvirem com delícia canções de cemitério ganidas por cantores trajados de luto, ao som de instrumentos plangentes e monótonos.
O único que, talvez por capricho de contradizer o ambiente e instinto de refilar, resistia a esta choradeira pegada, era o nosso João que, em virtude duma contínua ostentação de bravata alegre e teimosa na luta, todos conheciam por João Sem Medo.
Ora um dia, farto de tanta chorinquice e de tanta miséria que gelava as casas e cobria os homens de verdete, disse à mãe que, conforme a tradição local, lacrimejava no seu canto de viúva:
– Mãe: não aturo mais isto. Vou saltar o Muro.
A pobre desatou logo aos berros de súplica que abalaram o Céu e a Terra:
– Ah! não vás, não vás, meu filho! Pois não sabes que essa Floresta Maldita está povoada de Canibais Mágicos que se alimentam de sangue de homens? Sim, meu filho, de sangue humano bebido por caveiras. Não vás! Não vás!
E durante horas não cessou de barregar, histérica:
– Ai que não torno a ver o meu rico filhinho!
Mas as implorações da mãe não impediram que, na manhã seguinte, João Sem Medo se esgueirasse de Chora-Que-Logo-Bebes e se dirigisse à socapa para o tal Muro que cercava a floresta e onde alguém escrevera este aviso:

É PROIBIDA A ENTRADA
A QUEM NÃO ANDAR
ESPANTADO DE EXISTIR

Nem leu o palavreado do letreiro até ao fim. Graças ao arrimo de uma trepadeira providencial e auxiliado pelas sentinelas invisíveis que guardavam aquela selva misteriosa e pretendiam facilitar-lhe a entrada, não sei com que intuitos secretos, chegou com agilidade ao topo da muralha. Uma vez lá em cima, o problema simplificou-se mais ainda. Outra trepadeira miraculosa e pronto: João Sem Medo desceu a pulso, com os pés a apoiarem-se aqui e acolá nas junturas das pedras esverdeadas de musgo escorregadio. E assim conseguiu alcançar o solo da floresta que não tardou a explorar com lentidão prudente de quem receia ciladas e monstros ocultos no mato.
Ao princípio nada descobriu. Pela abóbada densa da folhagem penetravam a custo raríssimos raios de sol que, de espaço a espaço, acendiam manchas claras no chão fofo de séculos de líquenes, cogumelos apodrecidos e ramos secos.
Só passado um bom quarto de hora, quando os olhos se habituaram à meia treva, João Sem Medo deu conta deste espectáculo na verdade surpreendente: as árvores espreguiçavam-se, enquanto os pássaros, em lugar de cantarem, abriam os bicos em bocejos melodiosos. Ao mesmo tempo, alongadas na terra, com as cabecinhas de cores nos travesseiros das ervas, as flores ressonavam alto perfumes intensos. E as fontes embaladoras desdobravam o seu vagaroso sussurro de tédio dormente. O próprio João Sem Medo começou a sentir um torpor de morte provisória a pesar-lhe nas pálpebras e a tolher-lhe os braços e as pernas. De tal forma que resolveu acordar-se com dois ou três gritos e insultos que vararam a Floresta Adormecida:
– Então aqui não vive ninguém? Nem nereidas, nem faunos, nem gnomos, nem nada? Foi para esta pasmaceira que eu escalei o Muro, digam-me lá?
E, após quilómetros de marcha sonâmbula aos pontapés às pedras e aos arbustos para não adormecer, acabou por desembocar numa vasta clareira batida pelo sol, onde se deteve, os olhos ofuscados pela luz súbita.
Quando os reabriu, verificou com um sorriso de compreensão irónica que da clareira partiam dois caminhos, os dois caminhos clássicos de todas as histórias de encantos e prodígios: um asfaltado, cómodo, ladeado de amendoeiras em flor; o outro, pedregoso e eriçado de espinhos, urtigas e urzes.
– Bem – pensou. – Cá estão os dois caminhos fatais: o do Bem e o do Mal. (Como se houvesse caminhos nítidos do Bem e do Mal!) Já esperava por eles. Agora, para completar a comédia, falta apenas a respectiva fada… Uma fada a valer, de varinha de condão, que regule o trânsito à laia de polícia sinaleiro. Lá sem fada é que eu não passo.
E pôs-se de novo aos gritos de troça:
– Eh! Fada dos bosques! Aparece, rica fada da minh’alma.
Então – ó pasmo dos pasmos! – João Sem Medo viu sair da espessura da floresta um ser prodigioso que de longe parecia uma mulher jovem e bela, cabelo loiro até à cintura, três estrelas de prata na testa, varinha na mão direita, roca na mão esquerda, túnica bordada de rubis e esmeraldas, chapinsdellatina e tudo o mais que as fadas costumam usar nos bailes de Entrudo.
No primeiro momento contemplou-a, deslumbrado. Mas, à medida que a observava mais de perto, o sorriso inicial desfez-se pouco a pouco em caretas de desconfiança.
– És a Fada dos Dois Caminhos? – inquiriu, duvidoso.
– Palavra? Mostra cá o bilhete de identidade.
– Não acreditas? – protestou, para desviar a conversa, a hipotética fada com voz aflautada, voz de máscara aos guinchos. – Sim, sou a Fada Infalível, a Fada Lugar-Comum…
– Acredito, acredito… – concordou o rapaz por zombaria complacente.
E insistiu em examiná-la, com manifesta vontade de rir. E com razão. Pois a pseudofada parecia… Parecia, não. Era… Era mesmo um homem vestido de mulher, como se deduzia no desarrumo da cabeleira postiça à banda, no negror evidente da barba mal disfarçada por várias camadas de pó-de-arroz, além da maneira canhestra e hirta de andar e da falta daqueles mil e um ademanes femininos tão difíceis de imitar pelos homens. O jeito de pentear os cabelos com os dedos, por exemplo.
Embora não desejasse humilhá-lo, João Sem Medo não evitou um incondescendente riso de chacota.
– Que queres, filho? – explicou a fada falsificada, vexadíssima, a tropeçar na túnica. – Quando telefonaram para a Repartição da 3.ª Mágica a requisitar uma funcionária, só me encontrava lá eu, que sou contínuo, e uma fada já muito velhinha, muito perra, entrevada de reumatismo e com mais de 50 000 anos de serviço activo, quase na idade da reforma por inteiro, coitadinha! E então, por uma questão de prestígio, ofereci-me para esta fantochada. Nem quero pensar no que diria o Mago-Mor se não mandássemos uma fada válida para os Dois Caminhos. Pregava-nos uma descompostura tremenda. Foi por isso que me mascarei e vim… Não julgues, porém, que não percebo de artes mágicas!
E estadeou cheio de soberba vaidosa:
– Aqui, onde me vês, transformo com um piparote homens em ratos. E até deito flores pela boca. E sapinhos… Queres ver?
– Não, não – interrompeu João Sem Medo. – Acredito. Embora não entenda porque, sabendo tu tanto de artes mágicas, não te transfiguraste logo em mulher em vez de recorrer a esses ridículos caracóis postiços.
– Porque, segundo a regra primeira da Constituição Secreta do Mundo, só as aparências são susceptíveis de mudança e nunca o que existe de mais profundo nos seres. O sexo, por exemplo. Por mais que isso te espante, ser-me-ia fácil transformar-te em rato, mas nunca em rata.
– Bem, bem. Deixa-te de lérias – impacientou-se João Sem Medo. – E, já agora, toma a sério o teu papel de fada e aconselha-me qual dos caminhos devo seguir: o asfaltado ou o dos pedregulhos?
– Olha, menino – elucidou o contínuo, de roca debaixo do sovaco, a aconchegar a cabeleira para esconder melhor o luzidio da careca –, o bom caminho conduz à Felicidade. E o mau, à infelicidade…
– Vou pelo bom caminho, como é costume, claro – resolveu João Sem Medo, embora desconfiado de tanta facilidade aparente. – O contrário seria idiota e doentio.
E propunha-se iniciar a caminhada pela estrada das amendoeiras, quando a fada fingida o reteve com um gesto imperioso:
– Espera. Preciso de prevenir o guarda do Caminho da Felicidade por causa das formalidades da praxe. É só um minuto.
E, através do microfone de prata que extraiu da algibeira da túnica, enviou magicamente na língua das fadas, aliás muito parecida com o silêncio, uma mensagem ao tal guarda, por certo a muitas léguas de distância.
– Pronto – exclamou, no fim da conversa –, o automóvel vem já aí buscar-te. Adeus e felicidades.
E o marmanjão, agora de calva à mostra e túnica arregaçada, sumiu-se na floresta.
Daí a segundos, num fulgir de relâmpago, estacou perto de João Sem Medo um automóvel de oiro, sem condutor nem passageiros, de onde se desprenderam dois braços mecânicos que pegaram no rapaz com delicadeza cuidadosa e o recostaram nas almofadas. Em seguida, fechada a porta com rapidez automática, o carro despediu (a 3000 quilómetros à hora) e parou quase no instante da partida diante de uma casa de mármore branco em forma de cubo.
Janelas, nenhumas. Apenas uma portita ao centro. E na laje em frente da soleira, um cepo, um machado e uma pesadíssima cadeia de ouro.
– Que significa isto? – perguntou João ao ente misterioso que não guiava o automóvel mágico.
Mas o auto limitou-se a depô-lo em terra. E desapareceu no horizonte, mudo e faiscante, a acenar adeusinhos com um dos braços de metal…
Quase ao mesmo tempo assomou à porta do cubo uma figura monstruosa. Homem? Talvez; mas a quem tivessem decepado a cabeça, aberto dois olhos redondos no peito e talhado no estômago uma boca de lábios grossos e carnudos que tentaram sorrir para João Sem Medo enquanto articulavam esta saudação com voz desentoada de ventríloquo:
– Que a paz e a estupidez sejam contigo. Vens preparado para a operação?
– Que operação? – interrogou João Sem Medo, suspeitoso.
O descabeçado, de cigarrilha na boca do estômago, expôs-lhe então com paciência burocrática:
– Ninguém pode seguir o caminho asfaltado que leva à Felicidade Completa sem se sujeitar a este programa bem óbvio. Primeiro: consentir que lhe cortem a cabeça para não pensar, não ter opinião nem criar piolhos ou ideias perigosas. Segundo e último: trazer nos pés e nas mãos correntes de ouro…
João Sem Medo ouriçou-se numa reacção instintiva:
– Nunca! Bem se vê que não tens a cabeça no seu lugar.
– Realizada esta insignificante intervenção cirúrgica – prosseguiu o monstro imperturbável –, ninguém te impedirá de gozar o resto da vida na boa da pândega e da abastança. E tudo de graça. Porque quem não tem cabeça não paga nada.
Esta gracinha parva ainda convenceu mais o nosso herói a obstinar-se na recusa:
– Não, nunca. Então prefiro o outro caminho.
– Palerma! – lamurinhou o guarda com os olhos do peito marejados de lágrimas sinceras. Vais passar fome, sofrer dias de terror aflito…
– Deixá-lo. Prefiro tudo a viver sem cabeça. Nem calculas a falta que ela me faz.
– Não te faz falta nenhuma – contrariou o monstro, que acrescentou este comentário imbecil: – Pelo contrário: evitas o trabalho de ir ao cabeleireiro de quinze em quinze dias.
Mas ante uma careta de João Sem Medo apressou-se a afrouxar-lhe a cólera com esta proposta:
– Ainda tens talvez outra hipótese. Invocar o parágrafo 100 do artigo 4579 do Regulamento Interno e requerer a concessão que todos os Homens de Representação Pública costumam obter automaticamente em virtude das exigências estéticas do seu cargo. Isto é: em certos casos especiais, os cirurgiões, em vez de degolarem os felizardos, sugam-lhes os cérebros por palhinhas, deixando a casca por fora intacta, para inglês ver… Oh!, espera, espera! Não te vás embora ainda. Escuta. Também podes requerer a substituição da cabeça. Por uma melancia, por exemplo. Ou uma bola de futebol que é o enxerto mais vulgar. Ou uma bolinha de ténis que fica sempre tão bem nas pessoas finas, elegantes, esbeltas… Espera. Ouve.
Mas João Sem Medo nem lhe respondeu. Já ia longe, passo bem marcado, orgulhoso de sentir a cabeça nos ombros. E horas depois, quando chegou à clareira, enveredou, decidido, pelo caminho dos cardos e das árvores sinistras, a gritar desafiante para a floresta:
– Bem sei que podem perseguir-me, arrancar-me os olhos, torcer-me as orelhas, transformar-me em lagarto, em morcego, em aranha, em lacrau! Mas juro que não hei-de ser infeliz porque não quero.
E João Sem Medo continuou a subir o caminho árduo, resoluto na sua pertinácia de ocultar o medo – a única valentia verdadeira dos homens verdadeiros.

José Gomes Ferreira, Aventuras de João Sem Medo

terça-feira, 23 de junho de 2009

Inglês Superior




...........40 love


middle.............aged
couple..............playing
ten-..................nis
when................the
game................ends
the....................net
will....................still
be.....................be-
tween...............them


...................Roger McGough

Conheci este poema a meio caminho dos quarenta, nas aulas de Inglês do prof. V., no 12.º ano, enquanto, indisciplinadamente, jogava ao "8 Corte Inglês" (ou "8 Maluco"), com o colega do lado [aceitam-se apostas sobre a identidade deste último].

domingo, 21 de junho de 2009

Verão


sábado, 20 de junho de 2009

A novo pedido...

Amiga Margarida, cá vai, com um beijinho da filhota, que adora a Pantera, apesar de a conhecer apenas há umas semanas.

A pedido...

Margarida, aqui tens o amigo urso, interrompendo o longo silêncio, numa toada à Abrunhosa!

quarta-feira, 27 de maio de 2009

domingo, 24 de maio de 2009

Marginalidades

Se as tuclídias tivessem maitopos, não murmavam cloacas!

sábado, 23 de maio de 2009

Pergunta de algibeira


Por que razão os esquimós não comem pinguins?

* para não influenciar eventualmente as eventuais respostas de eventuais comentadores, vou guardando o que vai aparecendo para publicação posterior.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Essa palavra saudade...

diz tanto, mas não o suficiente para expressar as dores mais fortes e mais fundas que o corpo e a alma sofrem quando as distâncias, abrupta e implacavelmente, se cavam em fossos, se erguem em muros...

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Noroeste (IV)... beyond and back again

Como a malta (alguma) parece ter gostado dos Luar na Lubre, aqui apresento a primeira faixa do álbum Voyager (1996), de Mike Oldfield, que rearranjou o tema "O Son do Ar", original dos LnL, do seu primeiro álbum (1988) com título homónimo, tema esse que pode ser ouvido aqui mesmo ao lado no «Audiendo».

quarta-feira, 13 de maio de 2009

terça-feira, 12 de maio de 2009

segunda-feira, 11 de maio de 2009

sexta-feira, 8 de maio de 2009

KONIEC

Morreu há dias Vasco Granja, o melhor professor de educação visual da nossa geração, o único que nos ensinou realmente a VER. Com o engodo do cartoon americano mainstream do final do programa, geralmente do Tex Avery, "obrigava-nos" a conhecer as experiências mais ousadas no domínio da animação, desde as produções dos países que então ainda estavam para lá da cortina de ferro até aos experimentalismos do National Film Board of Canada, passando pelas incontornáveis escolas belga e francesa. Com ele, muito "vimos, ouvimos e lemos". Obrigado, companheiro Vasco, por não nos deixares ignorar.

Descubra as diferenças...






... entre o correcto e o politicamente correcto.

*Dicas: não tem nada a ver com os temas musicais (respectivamente final e inicial), nem com os idiomas destes (inglês ou basco), nem com o facto de um ser estático e o outro dinâmico.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

terça-feira, 5 de maio de 2009

Ainda mais uma versão do «Stabat Mater Dolorosa»

Saltando muitas etapas, eis-nos chegados à contemporaneidade...











* versão de Arvo Part (1985).

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Ainda o «Stabat Mater Dolorosa»

* esta é a versão de Palestrina.

domingo, 3 de maio de 2009

Ainda no Dia da Mãe




Stabat Mater Dolorosa

1. Stabat mater dolorosa
juxta Crucem lacrimosa,
dum pendebat Filius.

2. Cuyus animam gementem,
contristatam et dolentem,
pertransivit gladius.

3. O quam tristis et afflicta
fuit illa benedicta
Mater Unigeniti.

4. Quae moerebat et dolebat,
Pia Mater cum videbat
Nati poenas incliti.

5. Quis est homo qui non fleret,
Matrem Christi si videret
in tanto supplicio?

6. Quis non posset contristari,
Christi Matrem contemplari
dolentem cum Filio?

7. Pro peccatis suae gentis
vidit Jesum in tormentis
et flagellis subditum.

8. Vidit suum dulcem natum
moriendo desolatum,
dum emisit spiritum.

9. Eia Mater, fons amoris,
me sentire vim doloris
fac, ut tecum lugeam.

10. Fac ut ardeat cor meum
in amando Christum Deum,
ut sibi complaceam.

11. Sancta mater, istud agas,
crucifixi fige plagas
cordi meo valide.

12. Tui nati vulnerati,
tam dignati pro me pati,
poenas mecum divide.

13. Fac me tecum pie flere,
crucifixo condolere,
donec ego vixero.

14. Iuxta crucem tecum stare,
et me tibi sociare
in planctu desidero.

15. Virgo virginum praeclara,
mihi iam non sis amara:
fac me tecum plangere.

16. Fac ut portem Christi mortem,
passionis fac consortem,
et plagas recolere.

17. Fac me plagis vulnerari,
fac me cruce inebriari,
et cruore Filii.

18. Flammis ne urar succensus
per te Virgo, sim defensus
in die judicii

19. Christe, cum sit hinc exire,
da per matrem me venire
ad palmam victoriae.

20. Quando corpus morietur,
fac ut animae donetur
Paradisi gloria.

Amen.

*Autoria atribuída ao frade franciscano Jacopone da Todi (Século XIII)

**Canto Gregoriano pelo Coro Beneditino da Abadia de Clervaux