sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Barranco



Os dois minúsculos braços do arroio que hoje teima em desaguar na – assim agora conhecida – Baía dos Pescadores nem ao de leve se assemelham à indelével imagem que em mim perdura do regato que outrora corria para a então por todos chamada Praia do Peixe, como espinha dorsal do barranco, para nós palco de milhentas brincadeiras em tardes infindáveis de verões que pareciam nunca acabar.
Depois das manhãs passadas, em família, na praia, não nos era permitido ali voltar enquanto não terminasse aquele período de três horas reservado à digestão do almoço, o que significaria o desperdício da tarde se não houvesse aquele grupo de amigos da mesma rua e o espaço onde evoluíam as nossas brincadeiras vespertinas.
O barranco era um mundo ao qual eu acedia apenas transpondo a quase sempre aberta porta do quintal da casa dos meus avós. Era só sair e correr barroca abaixo pelos carreiros bem batidos, por entre cardos e piteiras, que me levavam às areias brancas e finas das margens do pequeno ribeiro que sem dificuldade atravessávamos a vau, pois a profundidade máxima oscilava entre a altura do tornozelo e a do joelho.
Lá encontrava o Carlos, que morava na casa em frente à nossa, o Arnaldo e os seus primos, Virgílio e Serafim, que viviam todos em casas do quintal da sua avó Belarmina, que era igualmente avó da minha amiga Paula, vizinha também no resto do ano em Benfica.
A nossa ocupação mais frequente consistia em apanhar pardelhas e pequenas eirozes, por entre as imprecações das mulheres que lavavam roupa em pequenas presas, porque lhes deixávamos a água suja.
As pardelhas geralmente eram levadas para casa e tentávamos, quase sempre sem glória e com alguma miséria, que sobrevivessem alguns dias em aquários improvisados. As mais sortudas eram aquelas que decidíamos atirar aos poços de água doce, pois aí encontravam geralmente um ambiente propício ao seu desenvolvimento e até à sua reprodução.
Já as pequenas eirozes tinham um destino bem mais funesto, pois acabariam enfiadas pela boca num pequeno anzol, servindo de isco na tentativa, as mais das vezes frustrada, de pescar eirozes grandes ou enguias, por meio de um pequeno “aparelho” que armávamos com materiais sobrantes da pesca a sério.
Geralmente, íamos buscar esses utensílios ao grande toldo situado na Praia do Peixe, mesmo em frente ao sítio onde de manhã o pai do Isménio, o sr. Garcia – à época, morando e explorando na mesma casa uma espécie de drogaria onde vendia de tudo um pouco, também na nossa rua –, fazia o leilão do peixe pescado na madrugada anterior, numa lota improvisada nas areias da própria praia, que por essa razão ganhara o nome que lhe dávamos.
Nesse toldo, à tarde, alguns pescadores, num tricotado incessante, remendavam as redes, enquanto outros aparelhavam as nassas para a pesca à lula. Dessas tarefas, sobravam sempre anzóis, fio de seda e pequenas bóias de cortiça, que, com o acordo mal disfarçado de reprimenda, os homens de pele curtida pelo sol e pelo sal nos dispensavam.
Atando o fio de seda, numa ponta, às rodelas de cortiça e, na outra, ao anzol, o qual fazíamos a eiró abocanhar, rapidamente tínhamos o aparelho pronto a ser deixado toda a noite a boiar nas águas do barranco, escondido entre os juncos ou nos canaviais. Na maior parte das vezes, nem os aparelhos conseguíamos recuperar na manhã seguinte, pois, provavelmente, algum viandante mais madrugador, no seu caminho para a rega das cercas, recolhia o produto da nossa faina. Outras vezes, em vez de eirozes, encontrávamos, presas nas nossas armadilhas, cobras de água. Muito poucas eram as ocasiões em que tínhamos a sorte de desaparelhar as verde-azuladas pequenas enguias, que orgulhosamente ostentávamos como se de safios ou congros se tratasse.
Pescadores de água doce com ferramentas do mar, eis o que éramos.

6 comentários:

Guida Palhota disse...

Afinal, nem só de "entrelaçar vimes" se compõe a vida de um tal Vítor...

Olá, 'pescador de água doce com ferramentas do mar'!

Também és isso, hoje. Porque o que fomos faz parte do que somos e porque senti a tua capacidade (eivada de vontade) para te lançares, no momento a seguir ao contar da história, à continuação da história...
Senti a tua saudade do prazer oferecido por um verão sem fim (que era 'sem fim', porque quando realmente acabava, já estava saciada a tua sede de águas doces e salgadas, gozadas com imaginação grupal e, por isso, nem davas conta que se finava... E também senti tudo o que revelaste das tuas férias de infância como algo que te rodeia agora, tudo indelével, de facto, porque tomado com a sofreguidão de um ser sensível, de registo fácil de pormenores, por em tudo reconhecer grandeza e beleza.
Obrigada por partilhares a tua infância de tempos idos, que me parece morar ainda em ti e não ter intenção de te largar...
Gostei de perceber que te sentes infante para sempre, eternamente agarrado às saias do teu barranco de risco ao meio. E apreciei as diferenças relativamente à minha infância, cujos espaços de convivência com as origens não incluíam pesca nem mar...
Gosto de histórias diferentes da minha. Gosto que nos contemos uns aos outros, até porque a nossa caminhada pelo tempo é, agora, tão mais rápida do que no tempo que revelaste que será melhor termos os sensores bem alerta para não deixarmos escapar nada...

P.S. Assim como quem não quer dizer... adorei a tua história!

Guida Palhota disse...

Olá, mais uma vez, pescador de águas várias...

Venho só deixar isto: )
É que faltou ali atrás!

A blue summer kiss

Lady Godiva disse...

(Com a música do "Sayago Blues", do Rui Veloso)

http://www.youtube.com/watch?v=P9N5MKlucKM

Sobe e desce o barranco
Deixa a avó, vai com os amigos
Atraído pelo regato
Corre por gozo e não vê perigos

Pensa que é um pescador
Do mar doce que é o ribeiro
Inventando pelo calor
Toma o mundo por inteiro

Barranco abaixo, barranco acima
Dá trabalho à imaginação
Barranco abaixo, barranco acima
(O sonho a pairar por cima)
Regista a vida no coração

Lá vai ele pelo seu pé
Gozar a faina da criançada
Imita os grandes, julga que o é
Cresce em brincadeira pegada

É o Vítor, um sonhador
Gravando vivências de união
Não sabe ainda que será professor
E que tudo então é já lição

Barranco abaixo, barranco acima
Aprendendo em reinação
Barranco abaixo, barranco acima
(O sonho a pairar por cima)
Prolonga a vida no coração

...

Vítor disse...

Margarida:

Gostei que tivesses gostado desta pequena partilha de um mundo que ainda existe e continuará a existir enquanto eu e os outros pescadores por cá formos andando, embora raramente falemos disso quando nos encontramos.
Gostei de perceber que alguém me percebeu e gostaria muito que nos contasses as tuas convivências com as origens sem pesca nem mar, mas, decerto, com muito do que ainda és hoje em movimento no tempo de então.
Gostei também do teu 'new blue summer look' de Guida cada vez mais Palhota.

A multicoloured all year round kiss

Vítor disse...

Lady:

Ai, que me ia dando uma "coisa"!
Tu és incrível, miúda!
Olha-me a lembrança e a trabalheira que isto te deve ter dado, além do mais sem eu nem o texto o merecermos.
Adorei a surpresa!
Ainda por cima, é uma das minhas preferidas do RV. Não estive no Rock in Rio em 2006 (nem em outro ano qualquer), mas estive na Amadora no início dos anos 80 e ouvi a que podes ver em http://www.youtube.com/watch?v=rLfWZm-kPoI.

Obrigado e um grande beijo

Vítor disse...

Lady (em jeito de P.S.):

Não posso deixar de dar conta da qualidade do teu texto. Além de muito belo, está tecnicamente perfeito - encaixa na música tão bem como (ou melhor do que) o original.

Mais um beijo e mais um agradecimento