O Alberto não era o maior da minha rua, porque o Alberto não era da minha rua. Eu é que hoje moro na rua dele. O Alberto era, portanto, o maior da sua rua. Mas, como a minha rua faz fronteira com a dele e porque também éramos da mesma classe (não lhe chamávamos turma na Primária), vivemos histórias comuns, muitas vezes em lados opostos das barricadas.
O Alberto não era o maior da sua rua em tamanho ou em idade, era tão-só o mais galhardo, o mais valente, o mais maluco. Eram dele as ideias mais loucas para entretenimento da malta. Foi ele quem “abriu” aquele Fiat 600 branco que alguém deixou abandonado lá na rua o tempo suficiente para despertar a curiosidade e a cobiça dos pequenos vagabundos da Rua H de baixo. E era vê-los a empurrarem o carro rua acima, com o Alberto sempre a orientar a manobra, para depois se enfiarem todos lá dentro e, sempre com o Alberto ao volante, deslizarem rua abaixo até embaterem, com grande estrondo e algumas marcas corporais, nos arbustos que marginavam o seco arroio a que chamávamos regueira e que marcava os limites não só da rua como do bairro – a seguir começava o caminho para a vacaria, serpenteando pelo meio da seara.
Sempre nos roemos de inveja por nunca termos podido entrar em tão loucas carreiras, apenas pelo facto de sermos da outra rua. É claro que eles também nunca viajaram parados no nosso carro, o qual tínhamos também “aberto”, mas que não podíamos fazer circular dada a configuração da nossa praceta – as nossas viagens eram mais imaginárias, do tipo “Hoje vamos até ao meu Alentejo; conduzo eu, que sei o caminho; amanhã levas tu o carro para o teu.” Já terá dado para perceber que na minha rua havia vários “maiores” – uns eram-no num plano, outros noutro.
Fomos crescendo, em corpo e em aventuras, e o Alberto foi continuando a ser o maior da rua dele. Já mais velhos, as diferenças “tribais” foram desaparecendo e os domínios de cada um começaram a ultrapassar as fronteiras da rua para se alargarem à dimensão do bairro. Cedo chegámos à idade de ficar na rua até querermos, noite e madrugada dentro, ocupando o tempo num misto de brincadeiras de adultos com o resto das que ficaram do tempo de criança. A bicicleta, transportando-nos de meninos a homens, cumpria, como nenhum outro brinquedo, essa função. As bicicletas que trazíamos da infância cresceram connosco – os selins foram subindo, as rodas foram aumentando até ao limite do garfo – e, como nós, foram mudando e aperfeiçoando o estilo – perderam os guarda-lamas e as campainhas, ganharam guiadores de cross com punhos a condizer, e até os pedais foram substituídos, tal como a pintura de origem.
Também com a bicicleta o Alberto tinha de ser o maior – agora, o maior dos maiores. Fazíamos corridas contra-relógio na rua até às duas da manhã, com algum perigo, para nós e para os (ainda que poucos naquele tempo) automobilistas. O Alberto, um dia, ou melhor uma noite, desviando-se in extremis de uma Ford Transit que subia a rua, espalhou-se no átrio da escada do seu prédio, porque felizmente a porta estava escancarada.
Quando um de nós precisava de uma qualquer peça para a sua máquina, íamos todos, em bando, a Queluz, à oficina do velho Carreta. Escusado seria dizer que enquanto um negociava para comprar, lá dentro, os outros, cá fora, iam trocando peças das bicicletas que traziam por outras das que estavam para arranjo ou já arranjadas. Não era bem um roubo, porque na maior parte das vezes funcionava na base da troca.
Numa dessas infindáveis e douradas tardes de fim de Primavera ou de princípio de Verão, em que – precursores das vias e infra-estruturas futuras – atalhávamos caminho pela seara de Queluz Ocidental, logo depois da figueira brava, passando a linha do comboio com as "biclas" às costas no sítio exacto onde vieram a construir a estação nova, para pedalarmos, a corta-mato, pelas traseiras do Palácio, ao lado das cavalariças ao tempo ocupadas pelos equídeos da GNR. O Alberto, obviamente, ia na frente, a uma distância razoável do pelotão. Tão confiante se mostrava que, sempre pedalando, ladeira abaixo, ia, virado para trás, provocando os perseguidores e vangloriando-se com o cheiro da vitória antecipada, enquanto nós, gesticulando e gritando, lhe dizíamos para olhar para a frente. Quando, finalmente, decidiu virar-se na direcção do seu destino, já era tarde de mais: estava a entrar no maior monte de estrume de cavalo que me lembro de alguma vez ter visto, com bicicleta e tudo. É claro que, depois de se desenvencilhar do monturo, lhe demos a maior distância possível, enquanto se encaminhava para o Jamor, que na época não estaria muito mais limpo do que ele.
* Alberto é um nome fictício para uma personagem real.
** Esta resposta ao desafio da Lady Godiva do “Mar Aberto” não é lá muito natalícia, mas...
*** Roubei a foto aqui.
O Alberto não era o maior da sua rua em tamanho ou em idade, era tão-só o mais galhardo, o mais valente, o mais maluco. Eram dele as ideias mais loucas para entretenimento da malta. Foi ele quem “abriu” aquele Fiat 600 branco que alguém deixou abandonado lá na rua o tempo suficiente para despertar a curiosidade e a cobiça dos pequenos vagabundos da Rua H de baixo. E era vê-los a empurrarem o carro rua acima, com o Alberto sempre a orientar a manobra, para depois se enfiarem todos lá dentro e, sempre com o Alberto ao volante, deslizarem rua abaixo até embaterem, com grande estrondo e algumas marcas corporais, nos arbustos que marginavam o seco arroio a que chamávamos regueira e que marcava os limites não só da rua como do bairro – a seguir começava o caminho para a vacaria, serpenteando pelo meio da seara.
Sempre nos roemos de inveja por nunca termos podido entrar em tão loucas carreiras, apenas pelo facto de sermos da outra rua. É claro que eles também nunca viajaram parados no nosso carro, o qual tínhamos também “aberto”, mas que não podíamos fazer circular dada a configuração da nossa praceta – as nossas viagens eram mais imaginárias, do tipo “Hoje vamos até ao meu Alentejo; conduzo eu, que sei o caminho; amanhã levas tu o carro para o teu.” Já terá dado para perceber que na minha rua havia vários “maiores” – uns eram-no num plano, outros noutro.
Fomos crescendo, em corpo e em aventuras, e o Alberto foi continuando a ser o maior da rua dele. Já mais velhos, as diferenças “tribais” foram desaparecendo e os domínios de cada um começaram a ultrapassar as fronteiras da rua para se alargarem à dimensão do bairro. Cedo chegámos à idade de ficar na rua até querermos, noite e madrugada dentro, ocupando o tempo num misto de brincadeiras de adultos com o resto das que ficaram do tempo de criança. A bicicleta, transportando-nos de meninos a homens, cumpria, como nenhum outro brinquedo, essa função. As bicicletas que trazíamos da infância cresceram connosco – os selins foram subindo, as rodas foram aumentando até ao limite do garfo – e, como nós, foram mudando e aperfeiçoando o estilo – perderam os guarda-lamas e as campainhas, ganharam guiadores de cross com punhos a condizer, e até os pedais foram substituídos, tal como a pintura de origem.
Também com a bicicleta o Alberto tinha de ser o maior – agora, o maior dos maiores. Fazíamos corridas contra-relógio na rua até às duas da manhã, com algum perigo, para nós e para os (ainda que poucos naquele tempo) automobilistas. O Alberto, um dia, ou melhor uma noite, desviando-se in extremis de uma Ford Transit que subia a rua, espalhou-se no átrio da escada do seu prédio, porque felizmente a porta estava escancarada.
Quando um de nós precisava de uma qualquer peça para a sua máquina, íamos todos, em bando, a Queluz, à oficina do velho Carreta. Escusado seria dizer que enquanto um negociava para comprar, lá dentro, os outros, cá fora, iam trocando peças das bicicletas que traziam por outras das que estavam para arranjo ou já arranjadas. Não era bem um roubo, porque na maior parte das vezes funcionava na base da troca.
Numa dessas infindáveis e douradas tardes de fim de Primavera ou de princípio de Verão, em que – precursores das vias e infra-estruturas futuras – atalhávamos caminho pela seara de Queluz Ocidental, logo depois da figueira brava, passando a linha do comboio com as "biclas" às costas no sítio exacto onde vieram a construir a estação nova, para pedalarmos, a corta-mato, pelas traseiras do Palácio, ao lado das cavalariças ao tempo ocupadas pelos equídeos da GNR. O Alberto, obviamente, ia na frente, a uma distância razoável do pelotão. Tão confiante se mostrava que, sempre pedalando, ladeira abaixo, ia, virado para trás, provocando os perseguidores e vangloriando-se com o cheiro da vitória antecipada, enquanto nós, gesticulando e gritando, lhe dizíamos para olhar para a frente. Quando, finalmente, decidiu virar-se na direcção do seu destino, já era tarde de mais: estava a entrar no maior monte de estrume de cavalo que me lembro de alguma vez ter visto, com bicicleta e tudo. É claro que, depois de se desenvencilhar do monturo, lhe demos a maior distância possível, enquanto se encaminhava para o Jamor, que na época não estaria muito mais limpo do que ele.
* Alberto é um nome fictício para uma personagem real.
** Esta resposta ao desafio da Lady Godiva do “Mar Aberto” não é lá muito natalícia, mas...
*** Roubei a foto aqui.
11 comentários:
Um grande abraço amigo
Feliz Natal e um 2009 cheio de certezas...
Um abraço ainda maior para ti, companheiro.
Festas Felizes
Olá, "maior da tua rua"!
Por enquanto, só consigo agradecer a prenda de Natal. :) Pois, porque nem só o que "fala" do Natal é natalício...
O Natal também está nestas histórias. E esta está particularmente bem contada.
Boas festas e um beijinho!
lady:
da minha rua fui sendo o maior em largura, mas hoje já me destronaram. Se o outro dizia que "Natal é quando um homem quiser", calculo que possamos dizer que em tudo haverá um pouco de Natal.
Beijo de Boas Festas
cati:
Sempre simpática nas tuas apreciações. Obrigado por continuares a passar por cá.
Beijo de Boas Festas
Belo texto! Isto é que é natal: auroras!:)
Beijinho.
clarice:
Obrigado e beijos de Boas Festas.
«A Aurora da Minha Vida» era um espectáculo do TECascais, que chegou a ser levado à cena na nossa Sala de Convívio. Assististe?
...mas eras o Maior do liceu, amigo!
UM abraço e bom 2009.
Grande "cromo" o Alberto, hein, Vítor!? O maior, de facto - pelo que tão bem contas. Sempre a somar episódios...
Vítor, sabes que tentei responder-te via telemóvel mas isto não colou... sou cá uma naba!:)
Não me lembro nada se vi "A Aurora da minha vida"... a idade faz destas coisas:)
beijos
carlos:
... nem por isso, companheiro, nem por isso.
Um óptimo ano também para ti e para os teus.
Abraço
margarida:
E, apesar da idade, continua a sê-lo, embora mais refinado. Pode ser que haja ainda um outro episódio a contar, com e sem Alberto.
clarice 2:
talvez o nabo seja o telemóvel. É natural que não tenhas visto, só fizeram um espectáculo e foi de manhã. E "Um dia na capital do Império", pela Barraca, com ameaça de bomba no final, viste? [eu sabia que a ameaça era falsa, o S. tinha-me dito que havia de fazer alguma coisa!...]
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