domingo, 20 de junho de 2010

Ignoto Deo



22 De pé, no meio do Areópago, Paulo disse, então:
«Atenienses, vejo que sois, em tudo, os mais religiosos dos homens. 23 Percorrendo a vossa cidade e examinando os vossos monumentos sagrados, até encontrei um altar com esta inscrição: ‘Ao Deus desconhecido.’ Pois bem! Aquele que venerais sem o conhecer é esse que eu vos anuncio.»

Act. 17, 22


Ignoto Deo
(D. D. D.)

Creio em ti, Deus; a fé viva
De minha alma a ti se eleva.
És: - o que és não sei. Deriva
Meu ser do teu: luz... e treva,
Em que - indistintas! - se envolve
Este espírito agitado,
De ti vêm, a ti devolve.
O Nada, a que foi roubado
Pelo sopro criador
Tudo o mais, o há-de tragar.
Só vive do eterno ardor
O que está sempre a aspirar
Ao infinito donde veio.
Beleza és tu, luz és tu,
Verdade és tu só. Não creio
Senão em ti; o olho nu
Do homem não vê na terra
Mais que a dúvida, a incerteza,
A forma que engana e erra.
Essência! a real beleza,
O puro amor - o prazer
Que não fatiga e não gasta...
Só por ti os pode ver
O que, inspirado, se afasta,
Ignoto Deo, das ronceiras,
Vulgares turbas: despidos
Das coisas vãs e grosseiras
Sua alma, razão, sentidos,
A ti se dão, em ti vida,
E por ti vida têm. Eu, consagrado
A teu altar, me prostro e a combatida
Existência aqui ponho, aqui votado
Fica este livro - confissão sincera
Da alma que a ti voou e em ti só spera.

                                                       Garrett, Folhas Caídas


Ignoto Deo

Que beleza mortal se te assemelha,
Ó sonhada visão desta alma ardente,
Que reflectes em mim teu brilho ingente,
Lá como sobre o mar o sol se espelha?

O mundo é grande – e esta ânsia me aconselha
A buscar-te na terra: e eu, pobre crente,
Pelo mundo procuro um Deus clemente,
mas a ara só lhe encontro... nua e velha...

Não é mortal o que eu em ti adoro.
Que és tu aqui? olhar de piedade,
Gota de mel em taça de venenos...

Pura essência das lágrimas que choro
E sonho dos meus sonhos! se és verdade,
Descobre-te, visão, no céu ao menos!

                                                        Antero de Quental, Sonetos


IGNOTO DEO

Desisti de saber qual é o Teu nome,
Se tens ou não tens nome que Te demos,
Ou que rosto é que toma, se algum tome,
Teu sopro tão além de quanto vemos.

Desisti de Te amar, por mais que a fome
Do Teu amor nos seja o mais que temos,
E empenhei-me em domar, nem que os não dome,
Meus, por Ti, passionais e vãos extremos.

Chamar-Te amante ou pai... grotesco engano
Que por demais tresanda a gosto humano!
Grotesco engano o dar-te forma! E enfim,

Desisti de Te achar no quer que seja,
De Te dar nome, rosto, culto, ou igreja...
– Tu é que não desistirás de mim!

                                                                 José Régio

4 comentários:

Guida Palhota disse...

Obrigada pelas palavras alheias sobre um assunto que anda aí na baila. Podem, a seguir, vir algumas tuas, please?

beijo

Rute disse...

São as eternas dúvidas... Expressas por palavras inspiradas, em ânsias desmedidas.

Vítor, beijo

Vítor disse...

Guida:

A intenção era (é?) começar pelas alheias e continuar com as próprias, mas ainda lá não cheguei.
'Nevertheless', sempre te posso adiantar uma ou duas coisas. Em primeiro lugar - e assumindo uma parte do meu reduzido conhecimento da literatura anglo-americana -, nunca li o livro do Steinbeck que retoma o título que (vá-se lá saber porquê!) prefiro em latim. Em seguida, devo confessar que já há muito tempo que não me preocupava com o tema, pois tenho andado arredado dos décimos segundos anos, os quais sempre me obrigavam a tropeçar, aqui e ali, num deus bem conhecido, umas vezes idolatrado, outras negado e mal amado. O aparecimento do teu post (e, posteriormente, o do Meireles) veio recordar-me a origem da expressão que tem servido de mote a tantos dos nossos poetas. Por isso recorri à «Bíblia», fonte onde todos vão beber com as mais diversas intenções. Mas devia ter apresentado a coisa como deve ser, começando pelo princípio: Diógenes Laércio (séc. III), na sua «Vida dos filósofos mais ilustres», explica a suposta origem da veneração dos atenienses a um deus desconhecido. Diz ele, que, estando a cidade infectada pela peste, mandaram vir de Creta Epiménides, um virtuoso, que livrou a urbe da epidemia agradando aos deuses da forma mais abrangente: ordenou que conduzissem um imenso rebanho de ovelhas brancas e pretas para o Aerópago e que as seguissem para erigir um altar ao deus mais próximo no sítio em que cada ovelha se deitasse. Algumas dessas aras ficaram sem nome, para agradar não só aos deuses conhecidos mas também aos que ainda se não conheciam, para "cobrir todas as apostas".
Por último, deixa-me ainda dizer-te que pretendo postar novamente sobre o assunto, assim que tenha algum tempo.

Beijo

Vítor disse...

Rute:

Eu não lhes chamaria dúvidas mas inquietações.
Dúvidas temos (ou tivemos) de cada vez que "matamos Deus num Domingo à tarde".
Já as inquietações assaltam-nos a qualquer hora, em qualquer momento da vida.
Como diz o José Mário Branco:
"Porquê? Não sei!
Porquê? Não sei!
Porquê? Não sei, ainda!"

Beijo