domingo, 10 de outubro de 2010

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Terrível palavra é o non. Não tem direito nem avesso; por qualquer lado que o tomeis, sempre soa e diz o mesmo. Lede-o do princípio para o fim, ou do fim para o princípio, sempre non. Quando a vara de Moisés se converteu naquela serpente tão feroz, que fugia dela por que o não mordesse, disse-lhe Deus que a tomasse ao revés. E logo perdeu a força, a ferocidade e a peçonha.
O non não é assim: por qualquer parte que a tomeis, sempre é serpente, sempre morde, sempre fere, sempre leva veneno consigo. Mata a esperança, que é o único remédio que deixou a natureza a todos os males. Não há correctivo que o modere, nem arte que o abrande, nem lisonja que o adoce. Por mais que confeiteis um não, sempre amarga; por mais que o enfeiteis, sempre é feio; por mais que o doureis, sempre é de ferro. Em nenhuma solfa o podeis pôr que não seja mal soante, áspero e duro. Quereis saber qual é a dureza de um não? A mais dura coisa que tem a vida é chegar a pedir e, depois de chegar a pedir, ouvir um não. Vede o que será. A língua hebraica, que é a que falou Adão e a que mais naturalmente declara a essência das coisas, chama ao negar o que se pede envergonhar a face. Assim disse Bersabé a Salomão: “Trago-vos, Senhor, uma petição, não me envergonheis a face”. E por que se chama envergonhar a face negar o que se pede? Porque dizer não a quem pede é dar-lhe uma bofetada com a língua. Tão dura, tão áspera, tão injuriosa palavra é um não. Para a necessidade, dura; para a honra, afrontosa; e, para o merecimento, insofrível.

António Vieira, in Sermão da Terceira Quarta-Feira da Quaresma

4 comentários:

Guida Palhota disse...

Olha que rico ensejo para eu poder lançar sinais do meu afogamento amargurado num imenso 'non' a que foram votados alguns tristes pedidos que não consegui evitar...

See you, capicua man

Vítor disse...

Hi, capicua girl!

Aproveita esse ensejo e fustiga-me, pela parte que me toca.
Ainda bem que percebeste a minha intenção ao publicar este post - penitenciar-me por NÃO ter respondido (e NAO respondido NÃO) a alguns desses teus pedidos, que não sei se são tristes.

Beijo

Guida Palhota disse...

Lamento informar-te, mas deves-me um texto sobre o Sul.

Vítor disse...

Olá, Guida!

Tens razão, carradas dela!
Tens todo o direito de me castigar como te aprouver, pois, infelizmente, não é essa a única promessa que não cumpri. Mas não está esquecida, esta em particular.
A trilogia saiu pequena e incompleta: a minha avó, apanhadora de limos, ficou muito mais pequenina do que realmente era no "Sal"; do meu avô, telheiro, muito mais haveria a dizer do que o que ficou no "Sol"; o problema maior, no entanto, colocou-se no momento de escrever o "Sul" - há tanto a dizer sobre o meu tio Manel (um dos "parvos" da aldeia, por ser mongolóide ou - como se diz agora, em politicamentecorrectês - portador de trissomia), a quem o meu amigo Paulo chamou "o último dos pré-socráticos", que nunca me cheguei a decidir por onde começar.
Mas, por ti e por ele, hei-de conseguir cumprir a proposição. Tem um bocadinho mais de paciência, se achas que ainda me podes permitir pedir-ta.

Beijo