Era uma vez um menino que nasceu cego para as coisas da terra. Só via o mar e o que nele havia. Sabia caminhos nas águas, carreirinhos. Dava nome às ondas, de uma em uma. Dizia: a luz nasce do mar e não dos astros. A claridade lhe chegava do azul, ainda molhada e, depois, flutuarejava nos céus.
Andar em terra enjoava-lhe. Tinha temor de pisar em solo firme, de cair no duro chão. Até o verde terrestre lhe incomodava. O menino não sabia tocar as folhagens, ásperas e secas. Plantas, para ele, eram as algas escorregadias e ondulantes.
Andar em terra enjoava-lhe. Tinha temor de pisar em solo firme, de cair no duro chão. Até o verde terrestre lhe incomodava. O menino não sabia tocar as folhagens, ásperas e secas. Plantas, para ele, eram as algas escorregadias e ondulantes.
– Quero a minha escola no mar, pai. Em terra não posso.
O pai respondia:
– Há-de ser, filho.
A mãe chorava. Como podia ela ter gerado aquele menino, mais a jeito de ser peixe? E a criança, apalpando o escuro, tocava as lágrimas da mãe e acreditava que ela sorria. No seu entender, água seria sempre sinal de felicidade.
– A mãe contenta-se. São meus dedos que dizem.
A pobre mulher não respondia. Aquele era seu único filho. Para o sustentar ela tivera que trabalhar na cidade. O dinheiro que o marido retirava das pescarias já não chegava. Nem tão pouco. Os três já eram tantos, mais bocas que braços. Quando ela saía para o trabalho, pelas traseiras da casa, o menino se derramava em total despedida. Como se fosse infinita a estrada.
O pai parecia nem dar conta da estranheza de seu filho. Aceitava. Mesmo decidira puxar a cabana mais para junto da rebentação. Prendas que o miúdo lhe trazia: conchas, búzios, brilhos da maresia.
– Será que passa?
Dúvida e angústia da mãe olhando o filho no meio das águas, nadando com despacho de golfinho. Ela sacudia a cabeça, negando-se: em terra o menino não tinha a competência de nem um passo, sequer um. Fora de água, sua visão se apagava. O pai, muitas das vezes, adentrava-se por terra, desafiando o miúdo para vir junto. Mas o filho chorava do escuro onde o mergulhavam.
Com o tempo e como a doença piorasse, a mãe passou a dedicar ódio ao mar. O incansável ruído das ondas já lhe inundava o sono. Ela deixou de dormir, ocupada em sofrer.
– Marido, vamos sair daqui. Vamos no interior.
– E nosso filho?
– Ele se habitua, você vai ver.
Concluía o homem que era impossível, o menino não resistiria. E assim demorou-se o tempo. O menino deu-se de bem crescer, encharcado de azul e sal. Agora, já não era mais criança. Ao fazer do corpo se ajuntava a vontade de ainda mais ser das águas. Um dia, ele:
– Devo ir. Eu pertenço lá.
E apontou o oceano. A mãe escondeu dentro um quase alívio. Mas era uma consolação triste, como se fosse o descanso de um parto falecido. Ela já não o ouvia, ele falava qualquer coisa de ser jardineiro, plantar nas ondas.
– Não chora, mãe. Eu hei-de passar a visitar.
O pai suspirou um longo silêncio.
– Não, filho. Já não vais-nos ver mais. Vou levar tua mãe para longe, ela não pode continuar-se vizinha da água.
Ele dobrou a despedida, perdendo-se no azul inatingível. Os dois velhos ficaram a ver a sua extinção. Quando o Sol ajoelhou a beijar o horizonte, ela pediu ao marido:
– Não vamos partir esta noite. Só amanhã.
O pescador, de silêncio, consentiu. Mas, naquela noite, eles não buscaram o aconchego da cabana. Ficaram, sob os ramos da Lua, olhando o escuro abismo por onde o filho desaparecera, ouvindo os seus passos afogando-se na distância.
...................................................................Mia Couto, Cronicando
7 comentários:
Que lindo , Vítor! A escrita do Mia Coto comove-me, parece "acançonada" e embala o coração porque é muito musical.
Obrigada por este bocadinho que nos deixaste aqui.
1 beijinho :)
Todos nós somos crias de alguém que, de um modo ou de muitos, assiste ao nosso afogamento na distância. Porque ninguém é pertença de ninguém, apesar de todos nos sentirmos donos e senhores de todos...
Olá, Vítor!
Apraz-me dizer-te que desejo profundamente que os meus filhos sintam um qualquer chamamento claro, forte, definido, como aquele que sentiu este menino pelo mar. E que possam ser livres para o seguirem, pois só vivendo escolhas emanadas de dentro nos poderemos aproximar da felicidade. E é isso que eu quero para os meninos que pus neste mundo, mesmo que, para tal, eu seja obrigada ao sofrimento da separação.
Um sonho, para ti...
de abóbora
Vítor
A foto é linnnnnda!
1 beijinho
Rute:
Sempre gostei do Mia Couto, e posso dizer que fui dos primeiros a conhecê-lo. É uma escrita quase fala, que nos leva para um universo que, de tão real, é muito mágico, cheio de vida e de morte, vivida uma e morrida outra com toda a intensidade e com toda a leveza.
Beijo
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Guida:
Eu não o conseguiria (nem sequer me atreveria) a dizê-lo melhor. Concordo contigo em absoluto; acrescento apenas a outra perspectiva, a daqueles de nós que "têm" crias que um dia se vão afogar na distância...
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Lady:
Aquilo que disse aqui atrás à Guida vai um bocado na linha do que tu afirmas.
Mas hás-de reconhecer que não será fácil esse "último" corte do cordão umbilical!
Obrigado pelo sonho
Toma lá uma azevia
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Anónimo:
Não costumo publicar comentários de anónimos.
Apenas o fiz com a intenção de te motivar a identificares-te, desejando-te as boas-vindas.
Retribuo o beijinho, sejas lá quem fores
Vítor
O anonimato foi por lapso e não propositadamente. Sou eu, a tua amiga Rute. Quando leres "1 beijinho", geralmente sou eu...
1 beijinho ;D
Rute:
Sempre resultou a provocação!...
Então, vá lá um beijinho para quem já sei que és
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