quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Tempo


Há já muito tempo que não aparecia por cá.
Mas estou vivo.
E tenho sentido a ausência.
Desejo a todos um óptimo ano novo!

domingo, 7 de novembro de 2010

Descobrir o Presente


Especialmente para ti, Guida, porque estou certo de que vais gostar e também porque, nas arrumações de gavetas, às vezes, saem de lá coisas novas.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

domingo, 10 de outubro de 2010

222



Terrível palavra é o non. Não tem direito nem avesso; por qualquer lado que o tomeis, sempre soa e diz o mesmo. Lede-o do princípio para o fim, ou do fim para o princípio, sempre non. Quando a vara de Moisés se converteu naquela serpente tão feroz, que fugia dela por que o não mordesse, disse-lhe Deus que a tomasse ao revés. E logo perdeu a força, a ferocidade e a peçonha.
O non não é assim: por qualquer parte que a tomeis, sempre é serpente, sempre morde, sempre fere, sempre leva veneno consigo. Mata a esperança, que é o único remédio que deixou a natureza a todos os males. Não há correctivo que o modere, nem arte que o abrande, nem lisonja que o adoce. Por mais que confeiteis um não, sempre amarga; por mais que o enfeiteis, sempre é feio; por mais que o doureis, sempre é de ferro. Em nenhuma solfa o podeis pôr que não seja mal soante, áspero e duro. Quereis saber qual é a dureza de um não? A mais dura coisa que tem a vida é chegar a pedir e, depois de chegar a pedir, ouvir um não. Vede o que será. A língua hebraica, que é a que falou Adão e a que mais naturalmente declara a essência das coisas, chama ao negar o que se pede envergonhar a face. Assim disse Bersabé a Salomão: “Trago-vos, Senhor, uma petição, não me envergonheis a face”. E por que se chama envergonhar a face negar o que se pede? Porque dizer não a quem pede é dar-lhe uma bofetada com a língua. Tão dura, tão áspera, tão injuriosa palavra é um não. Para a necessidade, dura; para a honra, afrontosa; e, para o merecimento, insofrível.

António Vieira, in Sermão da Terceira Quarta-Feira da Quaresma

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Dois


O tempo é a primeira das dimensões criadas pelo homem, a mais perfeita e a mais opressiva das suas obras.
Parece um aforismo ou uma citação de um qualquer autor famoso, daqueles por quem nos guiamos, daqueles que veneramos por terem conseguido dizer aquilo que sempre sentimos e pensámos mas que nunca conseguimos verbalizar.
Parece, mas não é.
Em primeiro lugar, não tem a sonoridade nem o ritmo que as sentenças tão bem sabem usar para se nos insinuarem, no caminho para nos vergarem à paixão por elas. Não é uma boa frase!
E, claro, o seu autor nunca virá a ser famoso por razão alguma, e muito menos pela autoria de tão sensaborona afirmação.
É, portanto, uma "obra menor" - não de um "autor maior", como a imagem que acompanha estas urdiduras poderá eventualmente engodar quem se fique pelas primeiras impressões apenas, mas de alguém a quem nem sequer "autor" se poderá chamar, tão "menores" são os artefactos que das suas mãos ganham vida.
É, apenas, uma coisa que a vida me foi ensinando, a mim, que tenho tão má relação com o tempo.
Se a Lady Godiva não tem tido a amabilidade de me "picar" com a publicação do seu post de ontem no Mar Aberto, provavelmente não me lembraria, nos dias que correm, do segundo aniversário deste blogue, «no fim do Verão».

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

A minha ostra é um mundo



The world is my oyster
ha ha ha ha ha ha ha ha

Do you wanna,
Do you wanna,
Do you wanna yeah.

I feel I'm a comin' your the go ahead kind.
You are warmly invited to come inside.
You have five minutes Christians yeah.
It was a joke yeah.
Because I'm a comin yeah, to cut your throat.
yeah give me more.

You are warmly invited to come inside.
You are warmly invited to come inside.
Come inside, come inside, come inside.

Your on your way up.
Gonna jack you up,
Gonna jack you off,
Gonna jack you up yeah.
Gonna jack you up,
Gonna jack you off,
Jack right down to Rio.

Lets go boys.

You can build it up like muscle.
You can build it up like hustle yeah.
Build it up.
I can take you higher.
Build it up.
I can take you high.
Build it up.
I can take you higher yeah.
Right on to the sky.

It was a joke.

Do you wanna,
Do you wanna,
Do you wanna,

Build it up.
I can take you higher yeah.
Right on to the sky.
I gonna take you higher yeah.
Right up there on high.

Swing low
Your on your way up.
Gonna jack you up,
Gonna jack you off,
Gonna jack you up yeah.
Gonna jack you up,
Gonna jack you off,
Jack right down to Rio.

Frankie Goes to Hollywood,
Welcome to the Pleasuredome (1984)

domingo, 5 de setembro de 2010

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Era uma vez...



Voltei, voltei...


No fim da 'silly season', permitam-me ser "silly"!

domingo, 18 de julho de 2010

Don't Go!


Para a Guida...

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Natureza Viva


Lady Godiva,

«Tarde é o que nunca chega!»
Eu sei que já lá vão algumas semanas desde que n' O Imediato lançaste um dos teus desafios, o de explicarmos o que é uma natureza morta.
Preferi mostrar-te uma viva, saída das mãos da artista cá da casa.
Diz que é o parque infantil, e eu acredito...

domingo, 20 de junho de 2010

Ignoto Deo



22 De pé, no meio do Areópago, Paulo disse, então:
«Atenienses, vejo que sois, em tudo, os mais religiosos dos homens. 23 Percorrendo a vossa cidade e examinando os vossos monumentos sagrados, até encontrei um altar com esta inscrição: ‘Ao Deus desconhecido.’ Pois bem! Aquele que venerais sem o conhecer é esse que eu vos anuncio.»

Act. 17, 22


Ignoto Deo
(D. D. D.)

Creio em ti, Deus; a fé viva
De minha alma a ti se eleva.
És: - o que és não sei. Deriva
Meu ser do teu: luz... e treva,
Em que - indistintas! - se envolve
Este espírito agitado,
De ti vêm, a ti devolve.
O Nada, a que foi roubado
Pelo sopro criador
Tudo o mais, o há-de tragar.
Só vive do eterno ardor
O que está sempre a aspirar
Ao infinito donde veio.
Beleza és tu, luz és tu,
Verdade és tu só. Não creio
Senão em ti; o olho nu
Do homem não vê na terra
Mais que a dúvida, a incerteza,
A forma que engana e erra.
Essência! a real beleza,
O puro amor - o prazer
Que não fatiga e não gasta...
Só por ti os pode ver
O que, inspirado, se afasta,
Ignoto Deo, das ronceiras,
Vulgares turbas: despidos
Das coisas vãs e grosseiras
Sua alma, razão, sentidos,
A ti se dão, em ti vida,
E por ti vida têm. Eu, consagrado
A teu altar, me prostro e a combatida
Existência aqui ponho, aqui votado
Fica este livro - confissão sincera
Da alma que a ti voou e em ti só spera.

                                                       Garrett, Folhas Caídas


Ignoto Deo

Que beleza mortal se te assemelha,
Ó sonhada visão desta alma ardente,
Que reflectes em mim teu brilho ingente,
Lá como sobre o mar o sol se espelha?

O mundo é grande – e esta ânsia me aconselha
A buscar-te na terra: e eu, pobre crente,
Pelo mundo procuro um Deus clemente,
mas a ara só lhe encontro... nua e velha...

Não é mortal o que eu em ti adoro.
Que és tu aqui? olhar de piedade,
Gota de mel em taça de venenos...

Pura essência das lágrimas que choro
E sonho dos meus sonhos! se és verdade,
Descobre-te, visão, no céu ao menos!

                                                        Antero de Quental, Sonetos


IGNOTO DEO

Desisti de saber qual é o Teu nome,
Se tens ou não tens nome que Te demos,
Ou que rosto é que toma, se algum tome,
Teu sopro tão além de quanto vemos.

Desisti de Te amar, por mais que a fome
Do Teu amor nos seja o mais que temos,
E empenhei-me em domar, nem que os não dome,
Meus, por Ti, passionais e vãos extremos.

Chamar-Te amante ou pai... grotesco engano
Que por demais tresanda a gosto humano!
Grotesco engano o dar-te forma! E enfim,

Desisti de Te achar no quer que seja,
De Te dar nome, rosto, culto, ou igreja...
– Tu é que não desistirás de mim!

                                                                 José Régio

sexta-feira, 18 de junho de 2010

O Dia da Morte de José Saramago


Desceram ao primeiro andar, e o gerente chamou um empregado, moço dos recados e homem dos carregos, que fosse buscar a bagagem deste senhor, O táxi está à espera defronte do café, e o viajante desceu com ele, para pagar a corrida, ainda se usa hoje esta linguagem de cocheiro e sota, e verificar que nada lhe faltava, desconfiança mal encaminhada, juízo imerecido, que o motorista é pessoa honesta e só quer que lhe paguem o que o contador marca, mais a gorjeta do costume. Não vai ter a sorte do bagageiro, não haverá outras distribuições de pepitas, porque entretanto trocou o viajante na recepção algum do seu dinheiro inglês, não que a generosidade nos canse, mas uma vez não são vezes, e ostentação é insulto aos pobres. A mala pesa muito mais do que o meu dinheiro, e quando ela alcança o patamar, o gerente, que ali estava esperando e vigilando o transporte, fez um movimento de ajuda, a mão por baixo, gesto simbólico como o lançamento duma primeira pedra, que a carga vinha subindo toda às costas do moço, só moço de profissão, não de idade, que essa já carrega, carregando ele a mala e pensando dela aquelas primeiras palavras, de um lado e do outro amparado pelos escusados auxílios, o segundo, igualzinho, dava-lho o hóspede, dorido da força que via fazer. Já lá vai a caminho do segundo andar, É o duzentos e um, ó Pimenta, desta vez o Pimenta está com sorte, não tem de ir aos andares altos, e enquanto ele sobe tornou o hóspede a entrar na recepção, um pouco ofegante do esforço, pega na caneta, e escreve no livro das entradas, a respeito de si mesmo, o que é necessário para que fique a saber-se quem diz ser, na quadrícula do riscado e pautado da página, nome Ricardo Reis, idade quarenta e oito anos, natural do Porto, estado civil solteiro, profissão médico, última residência Rio de Janeiro, Brasil, donde procede, viajou pelo Highland Brigade, parece o princípio duma confissão, duma autobiografia íntima, tudo o que é oculto se contém nesta linha manuscrita, agora o problema é descobrir o resto, apenas. E o gerente, que estivera de pescoço torcido para seguir o encadeamento das letras e decifrar-lhes, acto contínuo, o sentido, pensa que ficou a saber isto e aquilo, e diz, Senhor doutor, não chega a ser vénia, é um selo, o reconhecimento de um direito, de um mérito, de uma qualidade, o que requer uma imediata retribuição, mesmo não escrita, O meu nome é Salvador, sou o responsável do hotel, o gerente, precisando o senhor doutor de qualquer coisa, só tem que me dizer, A que horas se serve o jantar, O jantar é às oito, senhor doutor, espero que a nossa cozinha lhe dê satisfação, temos também pratos franceses. O doutor Ricardo Reis admitiu com um aceno de cabeça a sua própria esperança, pegou na gabardina e no chapéu, que pousara numa cadeira, e retirou-se.

in O Ano da Morte de Ricardo Reis

Eu Só Quero



Guida,
Eu sei que a versão que tens no Ar de Mim é melhor do que esta, a original, mas apeteceu-me recuar trinta anos só para partilhar convosco uma Manuela Moura Guedes que nunca deveria ter deixado de fazer a única coisa que sabia (e, mesmo assim, mal...)

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Not Dead (Yet)


Após mais de um mês de ausência, alguns terão pensado que já morri ou que, pelo menos, deixei morrer o blogue.
Não venho 'anunciar nenhuma morte nem proclamar nenhuma ressurreição', mas somente dizer que ainda ando por cá e que vos tenho lido, apesar de pouco ter comentado e nada postado.
Voltei - é só isso!

sábado, 15 de maio de 2010

Ridículas?



Olá, miudinha!


Como preferia ser eu a chegar-te em vez desta carta!... Ou, em alternativa, que me chegasses tu… De um ou de outro modo, que pudéssemos matar a sede de beijos que nos sufoca, vivendo intensamente cada segundo do pequeno hiato que os Fados, de longe em longe, nos reservam…
Dói, criaturinha!
Dói muito ter de viver tanto tempo sem ti… tanto tempo sem me prender no teu sorriso, tanto tempo sem mergulhar nos teus lábios, tanto tempo sem errar pela tua pele… tanto tempo sem podermos, no pouco tempo concedido, esquecer o tempo que, lá fora – implacável! –, cadencia as impossibilidades que cercam o nosso amor.
Amo-te!
Amo-te muito!
Amo-te tanto que hei-de conseguir sempre ir vencendo, até ao fim dos meus dias, a distância que nos separa e o silêncio que nos oprime.

Beijo-te
Tormes de Vigo

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Olvido


Desce por fim sobre o meu coração
O olvido. Irrevocável. Absoluto.
Envolve-o grave como véu de luto.
Podes, corpo, ir dormir no teu caixão.

A fronte já sem rugas, distendidas
As feições, na imortal serenidade,
Dorme enfim sem desejo e sem saudade
Das coisas não logradas ou perdidas.

O barro que em quimera modelaste
Quebrou-se-te nas mãos. Viça uma flor...
Pões-lhe o dedo, ei-la murcha sobre a haste...

Ias andar, sempre fugia o chão,
Até que desvairavas, do terror.
Corria-te um suor, de inquietação...

Camilo Pessanha, Clepsidra

No dia do teu aniversário, Isabel Pascoal, relembro um dos primeiros poemas que contigo aprendi a ler num Outubro já longínquo.
Parabéns!

domingo, 21 de março de 2010

Parabéns, filhota!
És o sol mais resplandecente de todas as primaveras.

Sol


Enfiadas as calças por cima das ceroulas e calçadas as botas de prateleira, Manuel percorreu os seis passos que distavam do catre à cozinha. Ali chegado, retirou da prateleira mais alta do escaparate dos pratos o frasco do mel, do qual, lentamente, deixou escorrer, para uma colher de sopa de alumínio, o âmbar do seu dejejum. Seis passos volvidos, e vestidos que foram a camisa e o casaco puídos, abriu a porta do meio e saiu para o quintal. Saudou-o a aurora, que se ia esforçando por penetrar na ramaria da latada de parreiras, verde tecto suspenso entre o muro de taipa que limita a sua posse predial e o beiral do telhado das casinhas que lhe correm paralelas. Uma delas foi recentemente provida de uma retrete e de um lavatório com águas correntes – obra requerida e comparticipada pelas filhas que moram lá nas cidades e vêm no Verão passar férias com os netos. A essa se dirige, enquanto o arrebol se vem azulando, montado na brisa que transporta o doce aroma do trigo a pedir ceifa. Aliviado o corpo e refrescado o rosto, entra em casa para logo voltar a sair, desta feita pela porta principal, já de chapéu enterrado na nuca.
Escolhe descer a rua, que, após a curva esquinada, segue agora mais plana em direcção ao cruzamento em que um dos quarteirões é o abismo da Praia do Peixe, onde daqui a nada o Garcia há-de começar a ladainha da lota improvisada na areia. Não é para aí que se dirige Manuel. Não é o mar quem o chama. Nunca o chamou. Ou ele nunca o quis ouvir. Nem sequer vai olhar para ele, pois, ao chegar à esquina da Guarda Fiscal, é à direita que vira, em sentido oposto ao do caminho que serpenteia, barroca a baixo, até ao barranco e ao porto. Avança, agora, pela rua que quase não sobe até ao cruzamento das duas vendas: a do Zé Inácio e a do Arsénio. É para a primeira que os seus passos o levam. Esta tem as portas e as portadas ainda cerradas, aliás como todas as outras casas da aldeia, de onde ainda não saiu vivalma.
Com o punho bem fechado, ataca a porta:
− Zé Naiço! Abre lá a venda, homem!
Silêncio absoluto.
Nova revoada de punhadas na madeira.
− Ó Zé Naiço! Zé Naaaaiço! Nã tarda nada tá aí a carrêra!
De dentro, vão-se ouvindo os passos do vendeiro, que começa, finalmente, a abrir a porta.
− Bom dia, Ti Manel! Entre lá, que eu já vou ter consigo.
Enquanto o homem, ainda só meio vestido, acaba de descerrar portas e janelas, Manuel vai avançando para o balcão alto e pousa os braços no mármore frio.
Zé Inácio pega numa garrafa e atesta um cálice de aguardente:
− Vá, tão!
Manuel, com a mão esquerda, pega no copo e, sempre tremendo e entornando parte do seu conteúdo, leva-o até à boca, engolindo, de um só trago, aquele incêndio que o vai percorrer.
− Vá lá ver outro, Zé Naiço!
− Olhe que eu tenho isto tudo pra arrumar… espere lá um poucachinho, que o dia é grande, Ti Manel.
− Agora cá! Pranta lá aí outro e dêxa-te de conversas…
Ali vai ficar o dia quase todo, jogando à Bisca de 16 e bebendo com os companheiros.
Ali passa, agora, o tempo, queimando por dentro o corpo que o Sol e o forno tantos anos lhe queimaram por fora.
Da arte das suas mãos e do suor do seu rosto nasceram muitas das telhas que cobrem a maioria das casas da aldeia e muitos dos tijolos que enformam as suas paredes ou cobrem os seus chãos. Manel do Telheiro arrancava a terra à terra, limpava-a do escalracho, macerava-a até atingir a consistência desejada, cortava-a e moldava-a segundo o destino a dar-lhe e, antes de a cozer no forno, oferecia-a ao Sol, que, em volúpia, a cobria de beijos e envolvia de carícias.

quinta-feira, 18 de março de 2010

O que sucedeu foi o seguinte...

Peço desculpa aos que por aqui vão passando por terem sido induzidos em erro com a publicação do último post, a qual mais não foi do que um acto falhado.
É que, após duas horas de redacção, quando dei ordem ao blogger para publicar o "Sol", tudo desapareceu não se sabe bem para onde, ou seja: perdi o texto e não o consegui já recuperar. Antigamente, escrevia os textos em Word e copiava-os para o blogger, mas foi hábito que infelizmente fui perdendo.
Fica a promessa de tentar reconstruir o "Sol" quando tiver um bocadinho...

domingo, 14 de março de 2010

Sal


Os outros santos doutores da Igreja foram sal da terra;
 Santo António foi sal da terra e foi sal do mar.

P.e António Vieira,
 Sermão de St.º António aos Peixes

Ainda a aurora vem para lá da loura planície, e já Francisca avança pelas dunas, aqui chamadas "medos", com passo certo e seguro. Deixou à filha mais velha todas as recomendações para cuidar dos irmãos e para a preparação dos almoços, que os mais novos ajudarão a levar ao pai, que anda na construção da "estrada nova", e a ela própria, Francisca, que por ora ainda vai a caminho da praia do Sissal, onde passará o dia a recolher os limos que a maré deixar.
A terra que a recebeu cedo foi pelas suas mãos trabalhada com o saber ancestral que lhe corre nas veias há gerações e gerações. Essas mãos de mãe, que pare e cuida, sempre da terra conseguiram a vida, tanto no pão como nas flores, que sempre amou.
Agora, é do mar que vão retirar o sustento que o sargaço está a dar, desde que chegaram aquelas camionetas que vêm pagar tostões por arrobas mal pesadas de limos castanhos, secos ao sol, estendidos nas areias dos medos.
Com o sal que vem do mar se salgará a terra.

* Esta é uma humilde tentativa de resposta a um triplo desafio que a Guida Palhota ali atrás deixou.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Abracadabra


Há coisas que custo a perceber neste ciberespaço em que navegamos todos os dias. Uma das que me têm ocupado algum tempo de vida nos últimos dias é o facto de, apesar de várias tentativas frustradas, não ter conseguido encontrar em lado nenhum a letra de um dos temas da discografia de Paulo de Carvalho que mais me marcaram - exactamente o que empresta o título a este post: «Abracadabra».
Como é possível navegar, horas a fio, num imenso mar de lixo, à cata de uma preciosidade, e acabar por de lá voltar com um indelével sentimento de frustração?
Não há vídeos no Youtube, letra nos sítios do costume, uma ponta por onde se possa desenovelar qualquer pista segura...
E eu, que já há tanto tempo ando a querer dizer com palavras alheias alguma coisa sobre os dias que correm, vejo-me obrigado a arriscar a confiança nos ecos que me vêm da memória.
Acho que eram assim as palavras que a Isabel Bahia alinhavou para o Paulo de Carvalho cantar:

                                Aqui está tudo bem!
                                Aqui está tudo tão bem!
                                O sol é mesmo de ouro,
                                a lua é toda de prata.
                                E quando chove
                                só caem diamantes!

                                Aqui não há semáforos,
                                aqui só há chupa-chupas.
                                E até as bengalas dos velhos
                                são feitas de chocolate.
                                 Ai, como é bom, tão bom,
                                 vivermos aqui!

                                  Abracadabra!
                                  Abrem-se as portas.
                                  Abrem-se os olhos de espanto.
                                  Não vejo o lado de fora!
                                  Quem me tira do encanto?

                                  (...)

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Ilustração Portuguesa


A Hemeroteca Municipal de Lisboa oferece-nos alguns tesouros, como a «Ilustração Portugueza», uma das mais célebres publicações do século passado.
É de visitar em:
 * Há por aqui um desafio escondido...

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

O sentido da vida - Parte I



PRIMEIRA CENA: TEATRO À LA CARTE


Um casal muito bem vestido assim para o moderno, sentado à mesa de um restaurante, a olhar para a ementa. Lançam-se olharzinhos por cima das ementas. Sorriem com ar de circunstância.

ELE: Estás-te a divertir, amor?

Depois de uma pausa, aborrecida de morte.

ELA: Muito, meu tesouro. Imenso.

Risinhos tontos de ambos enquanto se dão a mão.
Chega NÁDIA, com um bloco de notas e caneta, extremamente amável.

NÁDIA: Os senhores já decidiram?
ELE: O que é que te apetece?
ELA: Não tenho bem a certeza… Como é o número cinco?
NÁDIA: Fantástico. Eu recomendo. Política internacional.
ELE: É muito profundo?
NÁDIA: Para mim não…
ELA: O que leva?
NÁDIA: Uma base de análise global, envolta num discurso ecologista light, com molho rosa e reivindicações contratuais. Não é nada indigesto.
ELA: Não. O corpo pede-me uma coisa mais forte.
NÁDIA: O telelixo interessa-lhe?
ELA: Nem por isso.
NÁDIA: E a violência de género? Vem numa moldura de tolerância zero, com laivos de feminismo radical…
ELE: Não, nada de radicalismos. (Para ELA.) Não te cai bem, depois eu fico mal disposto e acabamos sempre a discutir.
NÁDIA: Fora da ementa posso oferecer-lhes terrorismo islâmico, acordos entre patronato e sindicatos – muito divertidos –, apontamentos para um novo conceito de macho ibérico…
ELA: Não tem nada mais pessoal? Qualquer coisa que nos toque mesmo fundo.
NÁDIA: Mais íntimo?
ELA: Que nos emocione.
ELE: Tens a certeza, amor?
ELA: Hoje é uma noite muito especial… E há tanto tempo que não sinto nada…
NÁDIA: A verdade é que já não fazemos o pessoal há muito tempo.
ELA: Porquê?
NÁDIA: Era demasiado catártico.
ELA: Não se preocupe. Catarse é connosco. Ele, para já, é dramaturgo.
ELE: Autor.
ELA: Vai dar ao mesmo.
ELE: Não é bem. O dramaturgo é um criador de linguagens cénicas, que tem as raízes da sua obra imersas na antropologia moderna e na arte contemporânea. O autor não. O autor é um autocrata que se auto-cria numa auto-crítica auto-freudiana a partir de uma autoridade autista, como um autêntico autómato. Não concorda?

Em resposta, NÁDIA continua a sorrir impávida.

ELA: E eu sou actriz. Mas não me conhece porque sou do teatro.
NÁDIA: (Depois de uma pausa.) Fica então para dividirem? O pessoal, quero dizer.
ELA: É muito forte para uma pessoa só?
NÁDIA: Pode gerar ansiedade, confusão e problemas de comunicação…
ELA: Perfeito. É exactamente o que estamos a precisar.
ELE: Está bem. Um pessoal para cada um.
NÁDIA: E para beber?
ELA: Um copo de Borba.
ELE: E uma água sem gás.

NÁDIA recolhe as ementas e vai-se embora.
Escuro.



Antonio Onetti, Nádia ou os anões vão crescendo

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Duocentésimo



PROMETEU

Éter divino, brisas de asas velozes,
nascentes dos rios, sorrisos inúmeros
das vagas do mar, ó terra, mãe de todos,
e disco do Sol, que tudo vê - eu vos invoco!
Vêde o que sofre um deus, da parte dos deuses!
Contemplai as torturas
dilacerantes, que, por tempos sem fim,
eu hei-de suportar!
Tais são as algemas infamantes
que para mim criou o jovem senhor dos bem-aventurados.
Ai! Ai! Suspiro pela pena
presente e futura. Donde há-de vir um dia
o extremo limite deste sofrimento?
Mas que digo? Conheço já com rigor
tudo o que há-de vir. Desgraça inesperada não pode
surgir. Força é suportar o melhor possível
o destino marcado, sabendo invencível
a força da necessidade.
Mas calar ou não calar a minha sorte
não me é possível. Coitado de mim, que, por ter ofertado
um dom aos mortais, estou sob o jugo da necessidade.
Fui eu que descobri, no recesso de uma cana,
a nascente furtiva do fogo, que aos homens se revelou
mestra de todas as artes e recurso inestimável.
Desses crimes expio agora a pena,
pregado com algemas, sob a luz do céu.

Ésquilo, Prometeu Agrilhoado

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Diamante


Parabéns, mãe, pelos 75 já cumpridos!

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Magnólia



A exaltação do mínimo,
e o magnífico relâmpago
do acontecimento mestre
restituem-me a forma
o meu esplendor.

Um diminuto berço me recolhe
onde a palavra se elide
na matéria – na metáfora –
necessária, e leve, a cada um
onde se ecoa e resvala.

A magnólia,
o som que se desenvolve nela
quando pronunciada,
é um exaltado aroma
perdido na tempestade,

um mínimo ente magnífico
desfolhando relâmpagos
sobre mim.

                 Luísa Neto Jorge

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Pelo fumo de um cigarro...


Gosto de dormir até tarde. Sempre gostei. É o meu relógio biológico: deitar tarde e tarde erguer!
Por isso me dá mais prazer levantar-me cedo em ocasiões especiais.
Nessa manhã primaveril, às sete e meia, já eu saía da Residencial das Trinas para entrar na pequena e apertada rua homónima, na direcção do miolo do casco de Guimarães.
É claro que, como qualquer turista, me fazia acompanhar de uma máquina fotográfica, mas acho que não cheguei a gastar um fotograma do filme incluso, em todo o tempo em que vagueei pelas milenares ruas, ruelas e praças da velha urbe, que pareciam ir despertando à minha passagem, lenta e atenta.
As imagens que guardei tenho-as todas algures entre a retina e as estantes empoeiradas da memória, onde também ainda subsistem os odores desse madrugador percurso labiríntico por entre lajes de granito entremeadas de um virginal branco e sacadas de madeira egrégia.
Chegado à Senhora da Oliveira, o pequeno-almoço tomado, a sós, na esplanada fronteira ao arco, encerrou essa pequena viagem no tempo sem tempo.
Mas ali volto, de quando em quando, como hoje, se me deixo levar pelo fumo de um cigarro...

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Gente Feliz com Lágrimas



Há dois dias, numa situação agora cada vez mais frequente, tive de dizer "Não!" à minha filha. É claro que o que se seguiu é também já rotineiro. Começou a chorar, ao mesmo tempo que dizia "Uimpa, uimpa!" e pedia para beber água.
Decidi perguntar-lhe:
– Limpo o quê, filha?
– As aguinhas! – respondeu-me ela, apontando com os deditos as lágrimas que lhe escorriam face abaixo.
Não me lembro de alguma vez me ter sido dado a conhecer mais belo poema sobre lágrimas!

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

sábado, 2 de janeiro de 2010

191




– Ainda o apanhamos! Ainda o apanhamos! Se apressarmos o passo, ainda o apanhamos!
E os teus olhos, ao ouvirem estas palavras, brilhando, concordaram.
E apressaste comigo o passo.
E descemos os Aliados, num alegre trote, de mão dada, como se, juntos, formássemos magicamente um ser duplamente alado.
E entrámos.
E pedimos bilhetes.
– Para onde?
– Para a Foz. Queremos ver o mar!
– Então, têm de mudar em Massarelos para a carreira 1.
– A 1, claro. Muito obrigado!
E sentámo-nos lá atrás, tu à janela, eu na coxia, sempre de mãos entrelaçadas, a beber nos olhos um do outro a paisagem que a luz do Porto nos pintava...

*Num dia de capicua, o meu post 191...

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Serenata Cínica

              (Outro poema cortado pela Censura. Na
              «Seara Nova». A «serenata cínica», para o
              Edmundo Bettencourt cantar. O querido
              Edmundo, magro como um grito.)



IX

Menino que vais na rua
não cantes nem chores: berra.
Cospe no céu e na lua
e aprende a pisar a terra.

Aprende a pisar o mundo.
Deixa a lua aos violinos
dos olhos dos vagabundos
e dos poetas caninos.

Aprende a pisar a vida.
Deixa a lua às costureiras
- pobre moeda caída
de quem não tem algibeiras.

Aprende a pisar no chão
o silêncio do luar
sem sentir no coração
outras pedras a gritar.

Pisa a lua sem remorsos
estatelada no solo...
Não hesites! Quebra os ossos
dessa criança de colo.

Pisa-a, frio, com coragem
sem olhos de serenata:
que isso que vês na paisagem
não é ouro nem é prata.

Menino que vais na rua
não chores, nem cantes: berra
ou então salta p'rá lua
e mija de lá na terra.

                           José Gomes Ferreira