sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

O sentido da vida - Parte I



PRIMEIRA CENA: TEATRO À LA CARTE


Um casal muito bem vestido assim para o moderno, sentado à mesa de um restaurante, a olhar para a ementa. Lançam-se olharzinhos por cima das ementas. Sorriem com ar de circunstância.

ELE: Estás-te a divertir, amor?

Depois de uma pausa, aborrecida de morte.

ELA: Muito, meu tesouro. Imenso.

Risinhos tontos de ambos enquanto se dão a mão.
Chega NÁDIA, com um bloco de notas e caneta, extremamente amável.

NÁDIA: Os senhores já decidiram?
ELE: O que é que te apetece?
ELA: Não tenho bem a certeza… Como é o número cinco?
NÁDIA: Fantástico. Eu recomendo. Política internacional.
ELE: É muito profundo?
NÁDIA: Para mim não…
ELA: O que leva?
NÁDIA: Uma base de análise global, envolta num discurso ecologista light, com molho rosa e reivindicações contratuais. Não é nada indigesto.
ELA: Não. O corpo pede-me uma coisa mais forte.
NÁDIA: O telelixo interessa-lhe?
ELA: Nem por isso.
NÁDIA: E a violência de género? Vem numa moldura de tolerância zero, com laivos de feminismo radical…
ELE: Não, nada de radicalismos. (Para ELA.) Não te cai bem, depois eu fico mal disposto e acabamos sempre a discutir.
NÁDIA: Fora da ementa posso oferecer-lhes terrorismo islâmico, acordos entre patronato e sindicatos – muito divertidos –, apontamentos para um novo conceito de macho ibérico…
ELA: Não tem nada mais pessoal? Qualquer coisa que nos toque mesmo fundo.
NÁDIA: Mais íntimo?
ELA: Que nos emocione.
ELE: Tens a certeza, amor?
ELA: Hoje é uma noite muito especial… E há tanto tempo que não sinto nada…
NÁDIA: A verdade é que já não fazemos o pessoal há muito tempo.
ELA: Porquê?
NÁDIA: Era demasiado catártico.
ELA: Não se preocupe. Catarse é connosco. Ele, para já, é dramaturgo.
ELE: Autor.
ELA: Vai dar ao mesmo.
ELE: Não é bem. O dramaturgo é um criador de linguagens cénicas, que tem as raízes da sua obra imersas na antropologia moderna e na arte contemporânea. O autor não. O autor é um autocrata que se auto-cria numa auto-crítica auto-freudiana a partir de uma autoridade autista, como um autêntico autómato. Não concorda?

Em resposta, NÁDIA continua a sorrir impávida.

ELA: E eu sou actriz. Mas não me conhece porque sou do teatro.
NÁDIA: (Depois de uma pausa.) Fica então para dividirem? O pessoal, quero dizer.
ELA: É muito forte para uma pessoa só?
NÁDIA: Pode gerar ansiedade, confusão e problemas de comunicação…
ELA: Perfeito. É exactamente o que estamos a precisar.
ELE: Está bem. Um pessoal para cada um.
NÁDIA: E para beber?
ELA: Um copo de Borba.
ELE: E uma água sem gás.

NÁDIA recolhe as ementas e vai-se embora.
Escuro.



Antonio Onetti, Nádia ou os anões vão crescendo

6 comentários:

Guida Palhota disse...

EU: (Na mesa ao lado.) Um pessoal para nós também. E dois copos de Esteva. A catarse esfuma-se no gás da água...

Vítor disse...

Guida:

Não te sabia personagem desta cena.
Aprovo a tua escolha do Esteva e talvez conceda que a catarse se esfume no gás da água; talvez por isso ELE tenha pedido "sem gás".

Beijo

Guida Palhota disse...

Danado! Não te escapa uma!
Ok. Leva lá a bicicleta e uma garrafa de litro e meio de água - "sem gás". Purifica lá bem esse organismo, com pedaladas e goladas... ;-)

Vítor disse...

Guida:

Em que didascália ficaste a saber que havia uma bicicleta em cena? Estou cada vez mais desconfiado que, de algum modo, fazes parte do espectáculo. És tu a encenadora? Ou a cenógrafa?
Hhhhhmmm!

Guida Palhota disse...

Eu não sou ninguém, menino Vítor! Eu não existo. Serão alucinações tuas?!...

Vítor disse...

Guida:

Talvez sejam mesmo alucinações minhas, pois, se 'não és ninguém', então a peça em que estás deve ser o «Frei Luís de Sousa», e houve para aqui um cruzamento ou uma intersecção entre duas "realidades" em cena.

(Quem me mandou pedir teatro à la carte?)