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domingo, 21 de março de 2010

Sol


Enfiadas as calças por cima das ceroulas e calçadas as botas de prateleira, Manuel percorreu os seis passos que distavam do catre à cozinha. Ali chegado, retirou da prateleira mais alta do escaparate dos pratos o frasco do mel, do qual, lentamente, deixou escorrer, para uma colher de sopa de alumínio, o âmbar do seu dejejum. Seis passos volvidos, e vestidos que foram a camisa e o casaco puídos, abriu a porta do meio e saiu para o quintal. Saudou-o a aurora, que se ia esforçando por penetrar na ramaria da latada de parreiras, verde tecto suspenso entre o muro de taipa que limita a sua posse predial e o beiral do telhado das casinhas que lhe correm paralelas. Uma delas foi recentemente provida de uma retrete e de um lavatório com águas correntes – obra requerida e comparticipada pelas filhas que moram lá nas cidades e vêm no Verão passar férias com os netos. A essa se dirige, enquanto o arrebol se vem azulando, montado na brisa que transporta o doce aroma do trigo a pedir ceifa. Aliviado o corpo e refrescado o rosto, entra em casa para logo voltar a sair, desta feita pela porta principal, já de chapéu enterrado na nuca.
Escolhe descer a rua, que, após a curva esquinada, segue agora mais plana em direcção ao cruzamento em que um dos quarteirões é o abismo da Praia do Peixe, onde daqui a nada o Garcia há-de começar a ladainha da lota improvisada na areia. Não é para aí que se dirige Manuel. Não é o mar quem o chama. Nunca o chamou. Ou ele nunca o quis ouvir. Nem sequer vai olhar para ele, pois, ao chegar à esquina da Guarda Fiscal, é à direita que vira, em sentido oposto ao do caminho que serpenteia, barroca a baixo, até ao barranco e ao porto. Avança, agora, pela rua que quase não sobe até ao cruzamento das duas vendas: a do Zé Inácio e a do Arsénio. É para a primeira que os seus passos o levam. Esta tem as portas e as portadas ainda cerradas, aliás como todas as outras casas da aldeia, de onde ainda não saiu vivalma.
Com o punho bem fechado, ataca a porta:
− Zé Naiço! Abre lá a venda, homem!
Silêncio absoluto.
Nova revoada de punhadas na madeira.
− Ó Zé Naiço! Zé Naaaaiço! Nã tarda nada tá aí a carrêra!
De dentro, vão-se ouvindo os passos do vendeiro, que começa, finalmente, a abrir a porta.
− Bom dia, Ti Manel! Entre lá, que eu já vou ter consigo.
Enquanto o homem, ainda só meio vestido, acaba de descerrar portas e janelas, Manuel vai avançando para o balcão alto e pousa os braços no mármore frio.
Zé Inácio pega numa garrafa e atesta um cálice de aguardente:
− Vá, tão!
Manuel, com a mão esquerda, pega no copo e, sempre tremendo e entornando parte do seu conteúdo, leva-o até à boca, engolindo, de um só trago, aquele incêndio que o vai percorrer.
− Vá lá ver outro, Zé Naiço!
− Olhe que eu tenho isto tudo pra arrumar… espere lá um poucachinho, que o dia é grande, Ti Manel.
− Agora cá! Pranta lá aí outro e dêxa-te de conversas…
Ali vai ficar o dia quase todo, jogando à Bisca de 16 e bebendo com os companheiros.
Ali passa, agora, o tempo, queimando por dentro o corpo que o Sol e o forno tantos anos lhe queimaram por fora.
Da arte das suas mãos e do suor do seu rosto nasceram muitas das telhas que cobrem a maioria das casas da aldeia e muitos dos tijolos que enformam as suas paredes ou cobrem os seus chãos. Manel do Telheiro arrancava a terra à terra, limpava-a do escalracho, macerava-a até atingir a consistência desejada, cortava-a e moldava-a segundo o destino a dar-lhe e, antes de a cozer no forno, oferecia-a ao Sol, que, em volúpia, a cobria de beijos e envolvia de carícias.

sábado, 17 de outubro de 2009

Dia do Meu Pai


Nem sempre te beijo, quase nunca te digo o quanto te amo, mas tu sabes bem que és para mim tudo o que nunca foram para ti, que tens sabido ser pai sem nunca teres sido filho.
Parabéns, PAI!

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Fim do fim de férias



Desta vez, o resto - embora não todo - veio também. A grande hora das gaivotas pode, enfim, ter início. A gente vê-se mais logo.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

21 de Fevereiro de 1935


Esta é a terra que te viu nascer, mãe. Não sei bem em qual das casas, mas penso que numa que deve estar escondida pela vegetação - dizes-me que nasceste no "moinho de água" da Bica do Meio.
Faz hoje 74 anos que nasceu a minha mãe, num pequeno monte à entrada da aldeia de Porto Côvo, concelho de Sines.
Parabéns, mãe! Hoje é teu todo o dia.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

17 de Outubro de 1935

7 dias antes: estreia, na Broadway, a ópera Porgy and Bess, de George Gershwin

3 dias depois, Mao Tse Tung e as suas forças comunistas terminam, em Yan'an, Shaanxi, a "Grande Marcha"



Faz hoje precisamente 73 anos que, em Dornelas, uma pequena aldeia rural do concelho de Aguiar da Beira, distrito da Guarda, nasceu o meu pai. Hoje, o dia é todo teu, pai.

domingo, 28 de setembro de 2008

Agarrado à vida


Não tenho grande jeito para fotografar – a mão treme-me talvez demasiado (sempre são vinte e tal anos de tabaco!) e o equipamento também não é grande coisa. É, por exemplo, a principal razão para ter tão poucas fotografias da minha pequenita. Mas, já que estava lá no Sul, e aproveitando o facto de o Verão já ter viajado e ter levado com ele a multidão com a qual nos meses de Júlio e de Augusto partilhamos o nosso torrão (de areia e mar), resolvi fazer algumas experiências nos espaços agora (quase) vazios.
Saí, decidido, para a rua (mas sem a “carteira castanha” do Tê/Veloso) e comecei a aproveitar a (pouca) luz da tarde já avançada. Resolvi ir pelo Largo, pois duas horas antes tinha conseguido uma foto sem absolutamente vivalma (tinha começado a chover!) e queria ver o que se passava a esta hora. Como o Sol tinha, ainda que timidamente, voltado, muita gente povoava a pequena praça. «Sigo já para o Espingardeiro», decidi. Contornando o chafariz como se de uma rotunda se tratasse, encaminhava-me para o antigo caminho da floresta, quando, num dos bancos do topo nordeste – onde não é costume –, vejo sentado o último dos Montinhos, o meu tio-avô Joaquim.
– Boa tarde! ‘Tá bom, Ti Joaquim?
– Olá, ‘tá bom? Quem...?
– Sou o Vítor... (o tio Joaquim viu sempre pouco, e agora então...)
– Ah, o Vitro... então o teu pai, está melhor?
– Vai mexendo mais... há bocado conseguiu vir aqui ao Isménio tomar café... mesmo na hora em que choveu...
– As nhas moças já me disseram que choveu, mas ê nã di notíiça...
– Eram para aí três horas, três e um quarto. Se calhar, estava a dormir a folga?!
– Pois... (sorrindo) ‘tava...
– Então e como é que tem andado?
– Olha, com quatro pernas! (com um gesto de doce amabilidade para com elas, apresenta-me, pousadas cada uma ao longo de uma das suas pernas estendidas, as suas “amigas”, as canadianas de alumínio) Com estas duas novas para ajudarem as velhas, que já estão muito ferrugentas nas dobradiças... tenho os joelhos muito presos... é o que me custa mais...
– Então, tem de andar um bocadinho de vez em quando para olear as ferragens...
– É... é o que eu faço... venho andando desde a casa ‘té aqui e depois sento-me um bocadinho...
– Mas hoje não está no banco do costume.
– Vim andando à pergunta da sombra e parí aqui neste...
– A fazer companhia aos gatos do Chico dos Porcos...
– São malinos! Tão depressa ‘tão dormindo como param quedos!
– Mas o tio e os seus camaradas hoje estão todos espalhados... aquele companheiro já esteve naquele banco e agora mudou para outro... e o outro companheiro hoje tem outra companhia...
– Tarda nada ‘tã-se a juntar...
– Para aqui se calhar hoje não vêm... viram-me aqui consigo.
... isto temos que ir mudando de companha...
– Para variar as conversas.
– As conversas são quase sempre as mesmas...
– Têm de se entreter...
– É... de manhêm vou por aí a baixo ao barbêro... e à tarde venho até aqui um poucachinho falar com os moços... (ri-se) com os velhos como eu...
– O tio agora é o mais velho cá da terra!
– É... agora há aí nenhum mais velho... às vezes, ‘tá aí uma senhora, que casou aí com o ??????, que é mais velha que eu, acho que uns meses... mas ela mora lá para Lisboa, e quando ela ‘tá cá sou eu o mais velho...
– Que idade é que tem agora?
– Se chegar a 21 de Novembro, faço 97...
– Então tem quatro de diferença para a minha avó; se ela fosse viva, já tinha 101, feitos em Março...
– Quatro? Nã sei... é capaz, sim... deve ser mais ou menos isso... ‘tão, a Conceição era más velha qu' eu aí uns dois anos... e a seguir era a Chica, a tua avó... sim... é capaz de ser isso... quantos é que disseste?... 101? Éramos oito e as diferenças duns para os outros eram mais ou menos de dois anos... é capaz, sim... A ‘Delaida era dois anos mais nova qu' eu, e o Toino tinha quase quatro de diferença de mim... Já foram todos... até os mais novos...
– O tio é o último dos Montinhos.
– Pois sou... E também já vive lá ninguém. Raça acabada! Quando vier aí o homem que leva a gente e me levar, acaba-se a raça...
– Ó tio, mas se ele aparecer, convença-o a voltar mais tarde... diga-lhe que ainda queria ver este Natal... e depois, quando voltar, empate-o até à Páscoa... depois, que é só mais um Verão...
Agora cá, que ele já vai nessa conversa. Já o ando a enganar há muito tempo... já ando agarrado à vida há muito tempo!
Entretanto, chegou a Leonor, uma das filhas, e a conversa mudou...
Acabei por ir tirar fotografias já quase de noite, mas ganhei mais uma hora de vida... com o pouco que já resta das minhas raízes mais antigas...
Não fotografei o Tio Joaquim!

terça-feira, 23 de setembro de 2008

O último dos Montinhos

És hoje o mais velho da terra... a ponte entre os que conheceste e os que ainda te lembrarão...
É em ti que a História se concentra, pois és, agora, o antes e o depois, talvez o alfa e o omega dos Montinhos, que nunca foi o verdadeiro apelido de gente tão pequena no tamanho como no nome (Manuel, Maria, Amélia, Francisca, Conceição, Adelaide, António e tu, Joaquim), nome que nos liga ao torrão de onde nos moldaram, terra que nunca foi nossa e que agora não é de ninguém.

* o meu tio-avô Joaquim já vai pelos noventa e é o primeiro a contar da esquerda.