domingo, 28 de setembro de 2008

Agarrado à vida


Não tenho grande jeito para fotografar – a mão treme-me talvez demasiado (sempre são vinte e tal anos de tabaco!) e o equipamento também não é grande coisa. É, por exemplo, a principal razão para ter tão poucas fotografias da minha pequenita. Mas, já que estava lá no Sul, e aproveitando o facto de o Verão já ter viajado e ter levado com ele a multidão com a qual nos meses de Júlio e de Augusto partilhamos o nosso torrão (de areia e mar), resolvi fazer algumas experiências nos espaços agora (quase) vazios.
Saí, decidido, para a rua (mas sem a “carteira castanha” do Tê/Veloso) e comecei a aproveitar a (pouca) luz da tarde já avançada. Resolvi ir pelo Largo, pois duas horas antes tinha conseguido uma foto sem absolutamente vivalma (tinha começado a chover!) e queria ver o que se passava a esta hora. Como o Sol tinha, ainda que timidamente, voltado, muita gente povoava a pequena praça. «Sigo já para o Espingardeiro», decidi. Contornando o chafariz como se de uma rotunda se tratasse, encaminhava-me para o antigo caminho da floresta, quando, num dos bancos do topo nordeste – onde não é costume –, vejo sentado o último dos Montinhos, o meu tio-avô Joaquim.
– Boa tarde! ‘Tá bom, Ti Joaquim?
– Olá, ‘tá bom? Quem...?
– Sou o Vítor... (o tio Joaquim viu sempre pouco, e agora então...)
– Ah, o Vitro... então o teu pai, está melhor?
– Vai mexendo mais... há bocado conseguiu vir aqui ao Isménio tomar café... mesmo na hora em que choveu...
– As nhas moças já me disseram que choveu, mas ê nã di notíiça...
– Eram para aí três horas, três e um quarto. Se calhar, estava a dormir a folga?!
– Pois... (sorrindo) ‘tava...
– Então e como é que tem andado?
– Olha, com quatro pernas! (com um gesto de doce amabilidade para com elas, apresenta-me, pousadas cada uma ao longo de uma das suas pernas estendidas, as suas “amigas”, as canadianas de alumínio) Com estas duas novas para ajudarem as velhas, que já estão muito ferrugentas nas dobradiças... tenho os joelhos muito presos... é o que me custa mais...
– Então, tem de andar um bocadinho de vez em quando para olear as ferragens...
– É... é o que eu faço... venho andando desde a casa ‘té aqui e depois sento-me um bocadinho...
– Mas hoje não está no banco do costume.
– Vim andando à pergunta da sombra e parí aqui neste...
– A fazer companhia aos gatos do Chico dos Porcos...
– São malinos! Tão depressa ‘tão dormindo como param quedos!
– Mas o tio e os seus camaradas hoje estão todos espalhados... aquele companheiro já esteve naquele banco e agora mudou para outro... e o outro companheiro hoje tem outra companhia...
– Tarda nada ‘tã-se a juntar...
– Para aqui se calhar hoje não vêm... viram-me aqui consigo.
... isto temos que ir mudando de companha...
– Para variar as conversas.
– As conversas são quase sempre as mesmas...
– Têm de se entreter...
– É... de manhêm vou por aí a baixo ao barbêro... e à tarde venho até aqui um poucachinho falar com os moços... (ri-se) com os velhos como eu...
– O tio agora é o mais velho cá da terra!
– É... agora há aí nenhum mais velho... às vezes, ‘tá aí uma senhora, que casou aí com o ??????, que é mais velha que eu, acho que uns meses... mas ela mora lá para Lisboa, e quando ela ‘tá cá sou eu o mais velho...
– Que idade é que tem agora?
– Se chegar a 21 de Novembro, faço 97...
– Então tem quatro de diferença para a minha avó; se ela fosse viva, já tinha 101, feitos em Março...
– Quatro? Nã sei... é capaz, sim... deve ser mais ou menos isso... ‘tão, a Conceição era más velha qu' eu aí uns dois anos... e a seguir era a Chica, a tua avó... sim... é capaz de ser isso... quantos é que disseste?... 101? Éramos oito e as diferenças duns para os outros eram mais ou menos de dois anos... é capaz, sim... A ‘Delaida era dois anos mais nova qu' eu, e o Toino tinha quase quatro de diferença de mim... Já foram todos... até os mais novos...
– O tio é o último dos Montinhos.
– Pois sou... E também já vive lá ninguém. Raça acabada! Quando vier aí o homem que leva a gente e me levar, acaba-se a raça...
– Ó tio, mas se ele aparecer, convença-o a voltar mais tarde... diga-lhe que ainda queria ver este Natal... e depois, quando voltar, empate-o até à Páscoa... depois, que é só mais um Verão...
Agora cá, que ele já vai nessa conversa. Já o ando a enganar há muito tempo... já ando agarrado à vida há muito tempo!
Entretanto, chegou a Leonor, uma das filhas, e a conversa mudou...
Acabei por ir tirar fotografias já quase de noite, mas ganhei mais uma hora de vida... com o pouco que já resta das minhas raízes mais antigas...
Não fotografei o Tio Joaquim!

4 comentários:

Cati disse...

Ai... e esta canção, meu Deus... esta canção... banda sonora perfeita para uma grande história!

Um beijo

Clarice disse...

Já temos fotografia... e bengala?

Lady Godiva disse...

Liiiiiiiiiiiiiiindo! Temos escritor! Se calhar (?), muito mais que fotógrafo, mesmo.
Ah, como sabe bem ler um bom texto de alguém que, de certo modo, já é nosso!...

A propósito, a minha avó teria feito 105 em Agosto.

Vítor disse...

Cati: folgo em saber que "gente nova" aprecia "música velha"... falta a grande história.

Clarice: temos, mas é antiga e - confesso! - não fui eu que a tirei; não a referenciei quando a publiquei, porque já a "saquei" há muito tempo e, nessa altura não me lembrei de registar a proveniência. Sim, era bengala e costuma ser... nunca o tinha visto com canadianas... surpreendeu-me... não foi a única nem a mais importante, mas foi uma das razões para não o fotografar!...

Lady Godiva: Que exageeeeeeeero! É um texto absolutamente banal e sem qualquer tipo de pretensões... a conversa foi mesmo mais ou menos assim... ainda falámos de mais uma ou outra coisa (p. ex., de todas as guerras que viveu alguém que nasceu em 1911) mas o post já estava longo.
A minha filha nasceu em 21 de Março de 2007, exactamente 100 anos e seis dias depois da minha avó - coincidência interessante, não é?