domingo, 14 de março de 2010

Sal


Os outros santos doutores da Igreja foram sal da terra;
 Santo António foi sal da terra e foi sal do mar.

P.e António Vieira,
 Sermão de St.º António aos Peixes

Ainda a aurora vem para lá da loura planície, e já Francisca avança pelas dunas, aqui chamadas "medos", com passo certo e seguro. Deixou à filha mais velha todas as recomendações para cuidar dos irmãos e para a preparação dos almoços, que os mais novos ajudarão a levar ao pai, que anda na construção da "estrada nova", e a ela própria, Francisca, que por ora ainda vai a caminho da praia do Sissal, onde passará o dia a recolher os limos que a maré deixar.
A terra que a recebeu cedo foi pelas suas mãos trabalhada com o saber ancestral que lhe corre nas veias há gerações e gerações. Essas mãos de mãe, que pare e cuida, sempre da terra conseguiram a vida, tanto no pão como nas flores, que sempre amou.
Agora, é do mar que vão retirar o sustento que o sargaço está a dar, desde que chegaram aquelas camionetas que vêm pagar tostões por arrobas mal pesadas de limos castanhos, secos ao sol, estendidos nas areias dos medos.
Com o sal que vem do mar se salgará a terra.

* Esta é uma humilde tentativa de resposta a um triplo desafio que a Guida Palhota ali atrás deixou.

5 comentários:

Guida Palhota disse...

Apetece-me dar a volta ao texto, à história, a qualquer sentido literal que possa estar aqui presente, e ver nos "medos" o sal de muitas existências ávidas da adrenalina que fervilha nos estômagos dos insaciáveis.
Por acaso, já ouvi dizer que "o sonho comanda a vida", mas gostaria mais de uma Francisca fiel à terra, sobre a qual lhe corre nas veias uma sabedoria ancestral, do que desta personagem, que aparenta ter perdido a confiança na sua aliada, ainda que não para lhe dar fortuna, deixando-se deslumbrar pelos tostões!
Faz-me lembrar um dos meus avôs, que, na ânsia do dinheiro, como tantos outros, se virou para o volfrâmio, deixando as terras por lavrar. Até que os seus quatro filhos tiveram de partilhar a única sardinha que havia, sem sequer terem pão para acompanhar, e andavam descalços, porque, se havia dinheiro, não havia o que comprar, pois todos abandonaram a fonte mais segura de subsistência e se deixaram levar pelo sonho de riqueza, poder, bem-estar...
Eram famílias e famílias carregadas de dinheiro e cheias de fome e de frio.
Não serei sonhadora, que queres!? Vivo com a ideia de que mais vale um pássaro na mão. Fundamentalmente, por ser mãe! E porque a terra é mesmo o meu elemento.

Um beijo

(De qualquer modo, temos aqui, como é teu apanágio, um belo texto. Obrigada pela resposta ao desafio. Espero pela continuação.)

Vítor disse...

Guida:

Como em relação a qualquer texto, o seu leitor terá sempre o direito de lhe dar a volta como quiser, mas esta é a história, tal qual aconteceu.
Francisca não foi atrás dos tostões por ambição mas por necessidade, pois o "abandono" da terra não resultou da sua vontade, foi uma imposição: quem nunca foi dono da terra chega um dia em que lhe não permitem trabalhá-la.
Francisca - eu sei que o texto ficou curto e não diz muita coisa! - apenas aproveitou uma oportunidade de trabalho, necessária à sobrevivência da família. Foi, fundamentalmente, por ser mãe, agarrar o pássaro com a mão.

Beijo

Guida Palhota disse...

Pois, Vítor, "o texto ficou curto..." (sou eu a desculpar-me, não ligues!).
Não quis crucificar a tua Francisca, como também nunca poderia crucificar o meu avô, que, viúvo e com quatro filhos pequenos, fez apenas aquilo que o discernimento em tempo de guerra permitiu a muitas pessoas. Deixava os filhos entregues a si próprios, com a possível supervisão das tias, moradoras na mesma aldeia, e partia, a pé, preferencialmente de noite (enquanto os filhos dormiam), palmilhava quilómetros esquecidos e, a maior parte das vezes, não trazia nada com que pudesse atenuar a fome das suas crias. Porque ninguém precisava de dinheiro. Tinham todos feito a escolha errada!
Não será o caso da tua Francisca (sei-o agora), que, não tendo escolha, se agarrou (e muito bem) àquilo que apareceu e a podia ajudar a alimentar os filhos.

(Quando os textos "ficam curtos", pode ser ainda mais fácil imaginar algo que se "cole" às nossas vivências...)

um beijo,
senhor autor cuja intenção eu não atingi

Rute disse...

Muito bonito o teu texto, Vítor. É pena ser pequenino, porque me deixou com água na boca.
Parece que nos dás " um cheirinho" de uma grande e genial história que ainda está para vir.

A sensibilidade com que escreves, toca-me!

1 beijinho

Vítor disse...

Olá Rute:

Peço desculpa pela exiguidade do texto, mas o tempo anda curto.
Obrigado pelas tuas palavras amáveis (e exageradas).

Beijo