Há umas semanas, regressando a casa depois das aulas, tomei o percurso de sempre, a N250, espécie de CREL de há meio século atrás, que liga Caxias a Sacavém, servindo povoações como Cacém, Belas, Caneças e Loures. É precisamente o troço Belas–Caneças que me possibilita o vaivém diário há quase duas dezenas de anos. Nessa ocasião, tendo "ligado o piloto automático" e navegando entre o Olival do Santíssimo, a estibordo, e a Serra da Helena, a bombordo, ia desenhando as curvas já tão conhecidas e pensando cá nas minhas coisas, quando, num sítio improvável e aparentemente sem razão alguma, o carro que me precedia parou. Reduzindo a minha velocidade até me imobilizar atrás dele tive oportunidade de me aperceber do "obstáculo": uma jovem mãe e sua quase recém-nascida prole, em passo bem marcado e decidido, acabados de sair de uma moita, embrenharam-se num valado, em direcção a uma das primeiras mães-de-água do centenário aqueduto joanino.
Apesar de a mãe perdiz não ter provavelmente muito mais do que um ano de vida, o trilho que seguia é decerto mais antigo do que o milenário aqueduto romano que jaz sob o seu descendente setecentista e, portanto, muito anterior a qualquer N250 ou estrada militar. É claro que, embora se apresentasse pela esquerda, a prioridade de passagem era daquela família: quem atravessava éramos nós. O seu caminho já existia antes de nós e continuará a existir muito depois de nos irmos.
3 comentários:
Também sobre um "Antes e depois de nós", embora não tão extenso como aquele que apresentas, apetece-me contar-te um episódio de ontem, ocorrido num tempo de jardinagem em família.
Enquanto alguns arrancavam ervas daninhas do empedrado, havia quem alinhasse a sebe, quem voltasse a corrigir as covas das árvores, quem varresse restos mortais e os levasse, em carrinho de mão, até uma nova morada, provisória, e quem já tivesse encetado a tarefa de acabar com o descomunal damasqueiro, que, de tanta produção, acaba sempre por ver apodrecer em si mais de três quartos da dádiva.
Ora, como que em gesto de autodefesa, o damasqueiro valeu-se do pardal que, no ninho, estava alojado em si, e fê-lo "descer", num voo atrapalhado e tímido que obrigou os jardineiros a suspenderem os seus trabalhos e a organizarem-se para conseguirem valer ao pardalito, que saltitava na vala por baixo da sebe, da esquerda para a direita e da direita para esquerda, num piar assustado que nos fazia sentir dó.
Depressa ouvimos também o piar dos seus pais e nos apercebemos de que havia, espaçadamente, quando nos calávamos nós, comunicação entre os progenitores e a cria.
Terá sido um momento de grande aflição da família dos pardais e foi um tempo de ansiedade para a nossa família, que se uniu para apanhar o pardalito e o recolocar no ninho, não se importanto de deixar o damasqueiro (em que não mais se tocará até que o passarinho saiba voar) com ramos só de um lado, a meio gás entre o sou e o não sou.
O pardalito já lá estava antes de chegarmos e lá continuou depois de nós sairmos.
Errata:
Onde se lê 'pardal' ou palavra derivada, deve ler-se 'melro' (ou palavra derivada)!
(Sempre fui bera para distinguir a passarada...)
Perdiz, pardal ou melro, tanto faz!
O que interessa é não nos esquecermos de que, se a história do nosso planeta fosse uma longa metragem, nós só apareceríamos nos últimos dois ou trÊs minutos (se tanto).
É preciso relativizar a nossa importância e a importância dos nossos problemas.
[Por acaso, nenhum de vocês seria capaz de registar em vídeo – sem interferir, claro – um bocadinho da vida desses inquilinos para partilhar com a malta no CE? A malta cá de casa ia gostar...]
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