Eu estava onde estive ontem: no meu Sul.
Porto Côvo era, então, uma pequena aldeia com apenas três ruas.
Além do, ao tempo, pequeno estabelecimento do recentemente falecido Augusto do Moinho, a que até hoje chamamos Correio, e da padaria do Raul Marta, três casas acima da nossa, apenas meia dúzia de vendas – bem distantes de se transformarem em cafés e restaurantes com pronto pagamento e sem serviço de mesa – tinham já electricidade. Telefones só havia dois - também no Correio e na Padaria. A água já entrava numa dezena e meia de edifícios em canos de chumbo, mas saía pela porta ou pela janela em despejos de alguidar ou balde nem sempre acompanhados do - já então em desuso - "água vai!" As casas de banho, nas poucas casas em que já existiam, consistiam numa sanita, com escoamento para fossas a céu aberto, mas a maior parte dos habitantes fixos e dos ocasionais banhistas dirigia-se à barroca (onde habitava uma comunidade utilíssima de escaravelhos das bolas) e escolhia uma moita para se agachar - chegava a ser local de encontro.
E televisores, quantos existiam lá em 20 de Julho de 1969?
Pelo que me contam, apenas três, em outras tantas casas comerciais, ao descer da rua principal: uma no Abilardo (actualmente, uma pizaria), venda que também alugava quartos; outra, no "café" Hermínio (espaço hoje partilhado por duas lojas), onde na minha adolescência vi muitos filmes que uma Renault 4L transportava e anunciava; a última, na Pensão Abelha (desde há uns anos, uma espécie de loja dos 300), onde praticamente acabava a rua e começava o caminho da Praia Pequena.
Foi nesses três televisores que, lá para as três e tal da manhã, depois de uma noite inteira de expectativa, assistiram à chegada dos primeiros homens à Lua muitos homens da aldeia, entre os quais o meu pai, o meu avô materno e o primo Jacinto, que foram alunando com o aconchego do medronho, de quando em vez refrescado com água "das pedras". Como, depois de jantar, não tinham dito ao que iam, a minha mãe, em casa sem saber o que se passava, pegou em mim e foi procurar o meu pai. E foi assim - disseram-mo há pouco ao jantar - que acabei por assistir ao que o mundo inteiro estava a ver.
Os meus pequenos passos de homem de 4 anos e 11 dias, nessa noite, foram os grandes passos da minha humanidade em construção.
9 comentários:
Adorei o teu texto.
Adoro histórias. Adoro, sobretudo, que 'me' contem histórias. Com voz.
Mas este teu texto escrito consegue as proezas de revelar uma voz e de nos fazer sentir que essa voz se dirige à nossa pessoa.
Estive, portanto, quietinha a ouvir-te..., pois adoro histórias. Então histórias de infância...
Eu estava onde não estive ontem: na terra onde me fui fazendo pessoa, até aos trinta e cinco - Queluz. E tinha cinco, desde o início desse ano.
Partilhei com os meus pais, com os meus tios mais novos, que moravam comigo, e com a minha avó materna (ou terão sido eles a partilhar comigo) o entusiasmo da grande aventura espacial que engrandecia as capacidades humanas.
O televisor era recente, em nossa casa, mas dava cada vez mais provas de ter sido uma excelente aquisição: através dele não podíamos só estar ligados aos outros homens da terra; podíamos saber do mundo... e em directo.
Não que eu percebesse aos cinco anos a dimensão do acontecimento, mas gravei para sempre a emoção da minha família ao assistir àquilo que me pareceu na altura (sim, eu lembro-me) uma chegada à neve.
Margarida:
Fico feliz por teres gostado da pequena história dos pequenos passos. Também gostei da tua. Apesar de não ter sido talvez muito explícito, gostaria que outras pudessem juntar-se-lhes, do pessoal aqui da rodinha (ou de quem, na "recoca", ainda nunca se manifestou). Era capaz de ser engraçado juntar essas peças do nosso (de todos) grande puzzle.
Lembro-me também desses dias de fascínio. Os meus pais tinham comprado um televisor que demorava eternidades a revelar imagens (as válvulas tinham de aquecer) de um som que chegava primeiro.
Lembro-me que a minha avó Amália (tenho saudades dela), olhava descrente e incrédula para aquela máquina descolorida.
Lembro-me também da emoção de ver a cápsula (objecto tão estranho) amarar algures num mar distante e ver sair de lá os heróis daquele tempo.
Foram bons esses momentos...
Um abraço
Ok,Vítor,vou então manifestar-me desta vez, já que nunca o fiz apesar de já por cá ter passado!
Mas olha que não tenho nada de especial para te dizer!É que há 40 anos eu ainda não tinha nascido!Falhei, portanto, este grande acontecimento para a humanidade!
Grandes tempos!Grandes mudanças!
Yanneck:
Também tenho muitas saudades da minha avó Chica, que, ao princípio, não acreditava que o que via dentro daquela caixa fossem pessoas reais; para ela era tudo desenhos animados, e a estes achava imensa graça (tinha um sentido de humor selectivo e bem apurado).
É curioso que as imagens mais antigas de que me lembro - não sei se da Apollo 11 ou se das seguintes - sejam exactamente as da amaragem.
Também foram bons os momentos que se lhes seguiram, com as colecções dos astronautas, veículos, estação espacial... que vinham nos gelados Olá (e acho que também no detergente Juá), já para não falar dos cromos.
Enfim, era um outro mundo...
Abraço grande
Lita:
É um enorme prazer receber-te por cá (finalmente). Ao contrário do que dizes, acho que o que disseste é bem especial, quanto mais não fosse por teres subido o degrau, mas também porque não falhaste esse tal momento da Humanidade, apenas chegaste um bocadinho atrasada.
Aparece sempre que te apetecer - esta casa é também tua.
Beijo grande
Também eu tenho muitas saudades das minhas avós, Alice e Pim (Leopoldina)... elas que gostavam da lua, desta vez olharam para tudo isto com algum receio... e também tenho saudades da televisão (do que o Janeca me foi lembrar...) daquele tempo, tinha três botões quadradinhos...primeiro carregava-se no de cima e esperavamos sentadinhos não sei bem porquê, depois no segundo botão e só passado um grande bocado é que o terceiro nos trazia a imagem. Isto tudo com o meu pai (morro de saudades...)a "dançar" com a antena branquinha que morava em cima do aparelho!
Hoje quando olho para a Lua, vejo-a com outros olhos...
Belo texto menino Vítor!
Clarice:
Às vezes (muitas, confesso!), tenho uma grande inveja das nossas avós pelo espanto primordial com que foram assistindo às grandes inovações que foram acontecendo em tempo das suas - em grande parte dos casos - longas vidas. Elas vieram quase da Idade Média até ao fim do milénio anterior no espaço de uma vida; elas são o século XX, com todo o seu esplendor e toda a sua miséria. Para elas, a Lua era um ser quase divino, com poderes sobre as marés propícias e adversas, as gestações dos homens e dos gados, as sementeiras, as mondas, as regas, as colheitas, os cortes de cabelo e de unhas, os humores e os amores, a vida dos vivos e dos mortos... e o seu reino não tinha fim. Pisá-la é profaná-la. Custa acreditar em tamanha iconoclastia. Custa perder a ilusão da magia. Custa ter de passar a olhar para a Lua com outros olhos. Custa até - a nós - conseguir recuperar os antigos olhos.
Beijo (em quarto crescente)
Só agora li esta história e devo dizer que gostei muito. A primeira parte da tua descrição faz lembrar-me as condições das aldeias há umas décadas, neste caso a dos meus avós paternos.
A segunda parte faz lembrar-me que ainda por cá não andava, ainda nem sequer havia computadores em casa das pessoas, as televisões tinham entradas para antenas UHF e VHF separadas, o Titanic continuava intocado no fundo do oceano, mas o homem americano colocava uma bandeira de haste especial na lua para dizer aos soviéticos que o seu pénis era maior do que o deles.
E entretanto fomos à Lua pela última vez em 1972.
Agora parece que querem colocar publicidade na lua, isto depois de um "lunático" já também ter andado a vender a lua aos bocados. Coisas de pessoal que anda na lua. Nós cá a vamos tendo e apreciando, enquanto os "lunáticos" não se transformam em entrepreneurs a sério.
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