domingo, 3 de maio de 2009

Dia da Mãe

..................................Almada Negreiros, Maternidade, 1935
AS MÃES

Quando voltar ao Alentejo as cigarras já terão morrido. Passaram o verão todo a transformar a luz em canto – não sei de destino mais glorioso. Quem lá encontraremos, pela certa, são aquelas mulheres envolvidas na sombra dos seus lutos, como se a terra lhes tivesse morrido e para todo o sempre se quedassem órfãs. Não as veremos apenas em Barrancos ou em Castro Laboreiro, elas estão em toda a parte onde nasce o sol: em Cória ou Catânia, em Mistras ou Santa Clara del Cobre, em Varchats ou Beni Mellal, porque elas são as mães. O olhar esperto ou sonolento, o corpo feito um espeto ou mal podendo com as carnes, elas são as Mães. A tua; a minha, se não tivesse morrido tão cedo, sem tempo para que o rosto viesse a ser lavrado pelo vento. Provavelmente estão aí desde a primeira estrela. E o que elas duram! Feitas de urze ressequida, parecem imortais. Se o não forem, são pelo menos incorruptíveis como se participassem da natureza do fogo. Com mãos friáveis teceram a rede dos nossos sonhos, alimentaram-nos com a luz coada pela obscuridade dos seus lenços. Às vezes, encostam-se à cal dos muros a ver passar os dias, roendo uma côdea ou fazendo uns carapins para o último dos netos, as entranhas abertas nas palavras que vão trocando entre si; outras vezes caminham por quelhas e quelhas de pedra solta, batem a um postigo, pedem lume, umas pedrinhas de sal, agradecem pelas almas de quem lá têm, voltam ao calor animal da casa, aquecem um migalho de café, regam as sardinheiras, depois de varrerem o terreiro. Elas são as Mães, essas mulheres que Goethe pensa estarem fora do tempo e do espaço, anteriores ao Céu e ao Inferno, assim velhas, assim terrosas, os olhos perdidos e vazios, ou vivos como brasas assopradas. Solitárias ou inumeráveis, aí as tens na tua frente, graves, caladas, quase solenes na sua imobilidade, esquecidas de que foram o primeiro orvalho do homem, a primeira luz. Mas também as podes ver seguindo por lentas veredas de sombra, as pernas pouco ajudando a vontade, atrás de uma ou duas cabras, com restos de garbo na cabeça levantada, apesar das tetas mirradas. Como encontrarão descanso nos caminhos do mundo? Não há ninguém que as não tenha visto com umas contas nas mãos engelhadas rezando pelos seus defuntos, rogando pragas a uma vizinha que plantou à roda do curral mais três pés de couve do que ela, regressando da fonte amaldiçoando os anos que já não podem com o cântaro, ou debaixo de uma oliveira roubando alguma azeitona para retalhar. E cheiram a migas de alho, a ranço, a aguardente, mas também a poejos colhidos nas represas, a manjerico quando é pelo S. João. E aos domingos lavam a cara e mudam de roupa, e vão buscar à arca um lenço de seda preta, que também põem nos enterros. E vede como, ao abrir, a arca cheira a alfazema! Algumas ainda cuidam das sécias que levam aos cemitérios ou vendem pelas termas, juntamente com um punhado de maçãs amadurecidas no aroma dos fenos. E conheço uma que passa as horas vigiando as traquinices de um garoto que tem na testa uma estrelinha de cabrito montês – e que só ela vê, só ela vê.

Elas são as Mães, ignorantes da morte mas certas da sua ressurreição.

...........................Eugénio de Andrade, in Vertentes do olhar, 1987


3 comentários:

Guida Palhota disse...

Ai eu!
O que sou eu de mãe, afinal?
E agora que faço? Vou precisar de rever tudo. Mas já não dá para recomeçar...
Ai eu!
É que não me encaixo mesmo neste modelo. E agora?
Credo! Deverei cuidar de encontrar apoio psicológico para as minhas crias? Ou deverá ser para mim?
Ai eu! Ai mô Deus! Quem me acode?
Ninguém me pode acudir, eu sei. Pois se as crias já vão para grandinhas... e eu não sou imortal, nem incorruptível, nem lhes teci a rede dos sonhos...
Ai eu, Vítor! Que dizes tu desta desgraceira?
Afinal, nem sou mãe nem formiguinha, nem mesmo sou galinha...
E perante isto? Ai eu!

Vítor disse...

Ai eu! Que te direi? Ai eu!

Quem te disse que não és imortal nem incorruptível?
Para eles (e para mais alguns), sê-lo-ás certamente, tenhas ou não dado conta de que, efectivamente, lhes urdiste a teia dos sonhos!

Ai eu! Espero ter respondido bem! Ai eu!

Guida Palhota disse...

Ai, Vítor...
Ninguém me disse nada; sou eu que penso tudo.
E tu vieste com ideias, também... Quiseste animar-me, convencer-me de que tenho feito o meu "trabalho" como devo...
Obrigada. Porque até me estou a deixar convencer.