segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Life Sentence

479.

Entrei no barbeiro no modo do costume, com o prazer de me ser fácil entrar sem constrangimento nas casas conhecidas. A minha sensibilidade do novo é angustiante: tenho calma só onde já tenho estado.
Quando me sentei na cadeira, perguntei, por um acaso que lembra, ao rapaz barbeiro que me ia colocando no pescoço um linho frio e limpo, como ia o colega da cadeira da direita, mais velho e com espírito, que estava doente. Perguntei-lhe sem que me pesasse a necessidade de perguntar: ocorreu-me a oportunidade pelo local e pela lembrança. «Morreu ontem», respondeu sem tom a voz que estava por detrás da toalha e de mim, e cujos dedos se erguiam da última inserção na nuca, entre mim e o colarinho. Toda a minha boa disposição irracional morreu de repente, como o barbeiro eternamente ausente da cadeira ao lado. Fez frio em tudo quanto penso. Não disse nada.
Saudades! Tenho-as até do que me não foi nada, por uma angústia de fuga do tempo e uma doença do mistério da vida. Caras que via habitualmente nas minhas ruas habituais – se deixo de vê-las entristeço; e não me foram nada, a não ser o símbolo da vida.
O velho sem interesse das polainas sujas que cruzava frequentemente comigo às nove e meia da manhã? O cauteleiro coxo que me maçava inutilmente? O velhote redondo e corado do charuto à porta da tabacaria? O dono pálido da tabacaria? O que é feito de todos eles, que, porque os vi e os tornei a ver, foram parte da minha vida? Amanhã também eu me sumirei da Rua da Prata, da Rua dos Douradores, da Rua dos Fanqueiros. Amanhã também eu – a alma que sente e pensa, o universo que sou para mim – sim, amanhã eu também serei o que deixou de passar nestas ruas, o que outros vagamente evocarão com um «o que será dele?». E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos na quotidianidade das ruas de uma cidade qualquer.

Bernardo Soares, Livro do Desassossego

5 comentários:

Clarice disse...

Os outros fazem-nos falta!
Mesmo os que só passam por nós na rua, mesmo sem lhes conhecermos a voz que é corpo, só lhe conhecendo o olhar que é alma.
Os nossos, esses, fazem-nos tanta falta!

Lady Godiva disse...

Olha, Bernardo, és hoje, seguramente, bastante mais do que eu serei num amanhã idêntico ao que referes: és aquele que sobrou da tua alma sensível e pensante, o que transbordou do universo que foste para ti (porque o foste para tantos!) És hoje muito mais do que um transeunte a menos! Apenas agora... em sossego.

Cati disse...

Grande som e grandes palavras. Grandes escolhas!

Um beijo*

Lady Godiva disse...

Ó Vitor, desculpa lá, mas isto hoje é só a propósito da cadeira do barbeiro...
Tantos dias aqui sem ninguém...
Hoje vou aproveitá-la. Não te hás-de importar. É que cá em casa não temos, a barbeira sou eu, hoje é dia de "tosquia"... Está tudo a conjugar-se! A malta até se vai regalar com a novidade! Sim?

Vítor disse...

Peço desculpa por só agora vir responder!

clarice:
cada vez nos fazem mais falta, os nossos e os outros, porque cada vez mais passamos (quase) indiferentes uns pelos outros.

lady 1:
acho que ele (Bernardo) não imaginava que poderia vir a ser o que é; quanto ao 'manipulador' por trás do 'roberto', a história seria outra...

cati:
a menina gosta de música dura, já tinha percebido... foi para onde me deu a neura, mas tenho saudades, de vez em quando, de ouvir umas metaladas e umas punkalhadas das antigas... se me mostrares algumas das novas agradeço-te (mas não acordes o coelhinho)

lady 2:
Usa a cadeira à vontade, tu e o teu pessoal todo. Posso ir para o fim da bicha? Já estou necessitado de uma tosquiadelazita...