quarta-feira, 31 de dezembro de 2008
terça-feira, 30 de dezembro de 2008
terça-feira, 23 de dezembro de 2008
O maior da minha rua

O Alberto não era o maior da sua rua em tamanho ou em idade, era tão-só o mais galhardo, o mais valente, o mais maluco. Eram dele as ideias mais loucas para entretenimento da malta. Foi ele quem “abriu” aquele Fiat 600 branco que alguém deixou abandonado lá na rua o tempo suficiente para despertar a curiosidade e a cobiça dos pequenos vagabundos da Rua H de baixo. E era vê-los a empurrarem o carro rua acima, com o Alberto sempre a orientar a manobra, para depois se enfiarem todos lá dentro e, sempre com o Alberto ao volante, deslizarem rua abaixo até embaterem, com grande estrondo e algumas marcas corporais, nos arbustos que marginavam o seco arroio a que chamávamos regueira e que marcava os limites não só da rua como do bairro – a seguir começava o caminho para a vacaria, serpenteando pelo meio da seara.
Sempre nos roemos de inveja por nunca termos podido entrar em tão loucas carreiras, apenas pelo facto de sermos da outra rua. É claro que eles também nunca viajaram parados no nosso carro, o qual tínhamos também “aberto”, mas que não podíamos fazer circular dada a configuração da nossa praceta – as nossas viagens eram mais imaginárias, do tipo “Hoje vamos até ao meu Alentejo; conduzo eu, que sei o caminho; amanhã levas tu o carro para o teu.” Já terá dado para perceber que na minha rua havia vários “maiores” – uns eram-no num plano, outros noutro.
Fomos crescendo, em corpo e em aventuras, e o Alberto foi continuando a ser o maior da rua dele. Já mais velhos, as diferenças “tribais” foram desaparecendo e os domínios de cada um começaram a ultrapassar as fronteiras da rua para se alargarem à dimensão do bairro. Cedo chegámos à idade de ficar na rua até querermos, noite e madrugada dentro, ocupando o tempo num misto de brincadeiras de adultos com o resto das que ficaram do tempo de criança. A bicicleta, transportando-nos de meninos a homens, cumpria, como nenhum outro brinquedo, essa função. As bicicletas que trazíamos da infância cresceram connosco – os selins foram subindo, as rodas foram aumentando até ao limite do garfo – e, como nós, foram mudando e aperfeiçoando o estilo – perderam os guarda-lamas e as campainhas, ganharam guiadores de cross com punhos a condizer, e até os pedais foram substituídos, tal como a pintura de origem.
Também com a bicicleta o Alberto tinha de ser o maior – agora, o maior dos maiores. Fazíamos corridas contra-relógio na rua até às duas da manhã, com algum perigo, para nós e para os (ainda que poucos naquele tempo) automobilistas. O Alberto, um dia, ou melhor uma noite, desviando-se in extremis de uma Ford Transit que subia a rua, espalhou-se no átrio da escada do seu prédio, porque felizmente a porta estava escancarada.
Quando um de nós precisava de uma qualquer peça para a sua máquina, íamos todos, em bando, a Queluz, à oficina do velho Carreta. Escusado seria dizer que enquanto um negociava para comprar, lá dentro, os outros, cá fora, iam trocando peças das bicicletas que traziam por outras das que estavam para arranjo ou já arranjadas. Não era bem um roubo, porque na maior parte das vezes funcionava na base da troca.
Numa dessas infindáveis e douradas tardes de fim de Primavera ou de princípio de Verão, em que – precursores das vias e infra-estruturas futuras – atalhávamos caminho pela seara de Queluz Ocidental, logo depois da figueira brava, passando a linha do comboio com as "biclas" às costas no sítio exacto onde vieram a construir a estação nova, para pedalarmos, a corta-mato, pelas traseiras do Palácio, ao lado das cavalariças ao tempo ocupadas pelos equídeos da GNR. O Alberto, obviamente, ia na frente, a uma distância razoável do pelotão. Tão confiante se mostrava que, sempre pedalando, ladeira abaixo, ia, virado para trás, provocando os perseguidores e vangloriando-se com o cheiro da vitória antecipada, enquanto nós, gesticulando e gritando, lhe dizíamos para olhar para a frente. Quando, finalmente, decidiu virar-se na direcção do seu destino, já era tarde de mais: estava a entrar no maior monte de estrume de cavalo que me lembro de alguma vez ter visto, com bicicleta e tudo. É claro que, depois de se desenvencilhar do monturo, lhe demos a maior distância possível, enquanto se encaminhava para o Jamor, que na época não estaria muito mais limpo do que ele.
* Alberto é um nome fictício para uma personagem real.
** Esta resposta ao desafio da Lady Godiva do “Mar Aberto” não é lá muito natalícia, mas...
*** Roubei a foto aqui.
quinta-feira, 18 de dezembro de 2008
On the road again
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.
Manuel Bandeira
quarta-feira, 17 de dezembro de 2008
sexta-feira, 12 de dezembro de 2008
Requerimento à Censura, Tom Zé
Do tempo em que, por haver censura prévia, se tinha de ser mais criativo para a ludibriar e desafiar.
Hoje, é claro que se pode dizer tudo, principalmente porque ninguém ouve ninguém, o que torna inconsequente o que se diga...
segunda-feira, 8 de dezembro de 2008
domingo, 7 de dezembro de 2008
quinta-feira, 4 de dezembro de 2008
O desafio da Clarice
Aceitando a proposta, aqui está o resultado:
1. um bocadão de mim...

3.
3.1. És homem ou mulher? I am just a new boy/ A stranger in this town (primeiros versos de “Young Lust”).
3.2. Descreve-te: Ainda sou “One of the Few” que continuam “On the Run”, “Wearing the Inside Out”.
3.3. O que pensam as pessoas de ti? Muitos pensam que tenho “Brain Damage” e, ao olharem para os meus “Paranoid Eyes”, dizem-me: “Shine on Your Crazy Diamond”.
3.4. Como descreves o teu último relacionamento:
“Another Brick in the Wall”.
3.5. Descreve o estado actual da tua relação:
“Empty Spaces”.
3.6. Onde querias estar agora?
“Outside the Wall”, “Learning to Fly”.
3.7. O que pensas a respeito do amor?
É tão belo e tão difícil de concretizar como “Two Suns in the Sunset”; disse difícil, não impossível, porque ainda sobram algumas “High Hopes” de “Coming Back to Life”.
3.8. Como é a tua vida?
“Comfortably Numb”.
3.9. O que pedirias se pudesses ter só um desejo?
“Yet Another Movie”: “Happiest Days of Our Lives”.
3.10. Escreve uma frase sábia:
“Let There Be More Light”.
4. Como das poucas pessoas que conheço por estas bandas já quase todas responderam ao desafio, vou ter de alargar o escopo da coisa. Lanço, por minha vez, o desafio a:
Aristóteles
Buda
Jesus Cristo
Karl Marx
ou qualquer outro indivíduo que, mesmo que não esteja definitivamente morto, não se ande "a sentir lá muito bem"...
Wireless

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008
Anos 80
Os trabalhadores do comércio lá estão de serviço em mais um feriado (e como trabalho infantil)...
domingo, 30 de novembro de 2008
sexta-feira, 28 de novembro de 2008
Parece que foi noutra vida...

quinta-feira, 27 de novembro de 2008
terça-feira, 25 de novembro de 2008
domingo, 23 de novembro de 2008
quarta-feira, 19 de novembro de 2008
Primordial
segunda-feira, 17 de novembro de 2008
domingo, 16 de novembro de 2008
sábado, 15 de novembro de 2008
O Dia da Criação - I

Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas como o mar
E bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos salvar.
quinta-feira, 13 de novembro de 2008
segunda-feira, 10 de novembro de 2008
Life Sentence

Entrei no barbeiro no modo do costume, com o prazer de me ser fácil entrar sem constrangimento nas casas conhecidas. A minha sensibilidade do novo é angustiante: tenho calma só onde já tenho estado.
Quando me sentei na cadeira, perguntei, por um acaso que lembra, ao rapaz barbeiro que me ia colocando no pescoço um linho frio e limpo, como ia o colega da cadeira da direita, mais velho e com espírito, que estava doente. Perguntei-lhe sem que me pesasse a necessidade de perguntar: ocorreu-me a oportunidade pelo local e pela lembrança. «Morreu ontem», respondeu sem tom a voz que estava por detrás da toalha e de mim, e cujos dedos se erguiam da última inserção na nuca, entre mim e o colarinho. Toda a minha boa disposição irracional morreu de repente, como o barbeiro eternamente ausente da cadeira ao lado. Fez frio em tudo quanto penso. Não disse nada.
Saudades! Tenho-as até do que me não foi nada, por uma angústia de fuga do tempo e uma doença do mistério da vida. Caras que via habitualmente nas minhas ruas habituais – se deixo de vê-las entristeço; e não me foram nada, a não ser o símbolo da vida.
O velho sem interesse das polainas sujas que cruzava frequentemente comigo às nove e meia da manhã? O cauteleiro coxo que me maçava inutilmente? O velhote redondo e corado do charuto à porta da tabacaria? O dono pálido da tabacaria? O que é feito de todos eles, que, porque os vi e os tornei a ver, foram parte da minha vida? Amanhã também eu me sumirei da Rua da Prata, da Rua dos Douradores, da Rua dos Fanqueiros. Amanhã também eu – a alma que sente e pensa, o universo que sou para mim – sim, amanhã eu também serei o que deixou de passar nestas ruas, o que outros vagamente evocarão com um «o que será dele?». E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos na quotidianidade das ruas de uma cidade qualquer.
Bernardo Soares, Livro do Desassossego
domingo, 9 de novembro de 2008
Breaking Glass (1980)
Com 15 aninhos celebrados há menos de duas semanas, aterrei em Heathrow em 21 de Julho de 1980.
O mundo mudou a partir desse dia, e eu soube-o nessa hora, mas numa dimensão ínfima se comparada com o que disso sei hoje.
Portugal, Lisboa, Massamá em 1980 estavam a anos-luz daquilo que comecei a ver a partir do momento em que o avião tocou o solo. Outro mundo, outra dimensão, em todos os planos. O que aprendi nos dois meses em que lá estive, para o bem e para o mal, moldou-me definitivamente o carácter. Vivendo em casa de familiares lá emigrados, trabalhando ao seu lado nas limpezas de escritórios e lojas ao fim do dia, tinha as manhãs e as tardes por minha conta e a chave de casa no bolso, ao lado das libras dos meus salários semanais. Não fiz tudo o que um puto de 15 anos poderia ter feito naquelas circunstâncias, mas isso só o soube mais tarde. Os meus horizontes eram limitados e a cidade era minha até onde pudesse ir a pé ou de autocarro ou metro sem correr o risco de me perder.
Talvez um dia continue a escrever esta história, entrando nos pormenores. Hoje, lembrei-me desse Verão, porque me lembrei dos dois discos - sim, só dois LP! - que de lá trouxe, comprados em Oxford Street: «McCartney II», acabadinho de sair e gravado pelo ex-Beatle praticamente em casa, e «Breaking Glass», primeiro trabalho de Hazel O'Connor e banda sonora do filme homónimo no qual ela é protagonista, película essa que só chegaria a Portugal, salvo erro, quase dois anos depois.
Em 80, dizia-se que o 'punk' tinha morrido, mas o que eu vi em Londres não foi nada disso.
Em 80, a 'new wave' amadureceu e vingou pelo menos meia década.
«Breaking Glass» é 'new wave' mas 'punk'. Não é uma referência para os entendidos, mas influenciou-me talvez mais do que qualquer outra coisa que tivesse ouvido até então.
E, entretanto, 28 longos anos depositaram-lhe muitas camadas arqueológicas em cima.
quinta-feira, 6 de novembro de 2008
O simples é belo
Esta é a versão d'«O Mundo da Criança».
A mais antiga que conheço (e de que gosto mais) está em:
http://www.youtube.com/watch?v=NcSgW1tBYrg#
terça-feira, 4 de novembro de 2008
Ocaso
domingo, 2 de novembro de 2008
The Quest
PORTUGAL SACRO-PROFANO
Vila do Conde
O lugar onde o coração se esconde
é onde o vento norte corta luas brancas no azul do mar
e o poeta solitário escolhe igreja pra casar
O lugar onde o coração se esconde
é em dezembro o sol cortado pelo frio
e à noite as luzes a alinhar o rio
O lugar onde o coração se esconde
é onde contra a casa soa o sino
e dia a dia o homem soma o seu destino
O lugar onde o coração se esconde
é sobretudo agosto vento música raparigas em cabelo
feira das sextas-feiras gado pó e povo
é onde se consente que nasça de novo
àquele que foi jovem e foi belo
mas o tempo a pouco e pouco arrefeceu
O lugar onde o coração se esconde
é o novo passado a ida pra o liceu
Mas onde fica e como é que se chama
a terra do crepúsculo de algodão em rama
das muitas procissões dos contra-luz no bar
da surpresa violenta desse sempre renovado mar?
O lugar onde o coração se esconde
e a mulher eterna tem a luz na fronte
fica no norte e é vila do conde
Ruy Belo,
sábado, 1 de novembro de 2008
sexta-feira, 31 de outubro de 2008
Desassossego

V
Ah! se acontecesse enfim qualquer coisa!
Se de repente saísse da terra um braço
e atirasse uma rosa
para o espaço.
Mas não.
Lá está o sol do costume
com a exactidão
de uma bola de lume
desenhada a compasso...
... sol que à noite continua
a andar em redor
nas entranhas da lua
– que é sol com bolor...
E desde que nasci,
haja paz ou guerra,
nunca vi outra coisa.
Ah! como queres que acredite em ti
– braço que hás-de romper a terra
e atirar uma rosa?
quinta-feira, 30 de outubro de 2008
Trovante - Xácara das Bruxas Dançando
ESCONJURO DA QUEIMADA
para recitar enquanto a poção arde e antes de servir aos participantes
Mochos, corujas, sapos e bruxas.
Demónios, duendes e diabos, espíritos dos nevoeiros.
Corvos, salamandras e meigas, feitiços das curandeiras.
Troncos podres e furados, lugar de vermes.
Fogo das Guerras Santas, negros morcegos,
Cheiro dos mortos, trovões e raios.
Orelha de cão, pregão da morte;
Focinho de rato e pata de coelho.
Pecadora língua de mulher má casada com homem velho.
Casa de Satanás e Belzebu, fogo dos cadáveres ardentes
Corpos mutilados de indescentes,
Peidos de cus infernais
Bramido do mar bravo
Barriga inútil de mulher solteira
Miar de gatos que andam à solta.
Guedelha suja de cabra mal parida.
Com este fole levantarei as chamas deste lume
que se assemelha ao do inferno
E fugirão as bruxas a cavalo das suas vassouras
indo-se banhar na praia das areias gordas.
Oiçam! Oiçam os ruídos que fazem
as que não podem deixar de queimar-se na aguardente
ficando assim purificadas.
E quando este preparo, passar pelas nossas goelas,
ficaremos livres dos males da nossa alma
e de todo o embruxamento.
Forças do ar, terra, mar e lume!
A vós faço a chamada:
Se é verdade que tendes mais força que a humana gente,
aqui e agora, fazei com que os espíritos
dos amigos que estão fora,
participem connosco nesta Queimada
quarta-feira, 29 de outubro de 2008
Dupla inquietação
XL
Homens: na noite do desânimo
levanto a minha voz
para pregar o ódio.
Um ódio total e violento
a todos os narcóticos
que adormecem a realidade
com neblinas de música.
Ódio às lágrimas mal choradas diante dos poentes,
à alegria das crianças mortas que teimam em rir nos olhos dos velhos,
às noites de insónia por causa de uma mulher,
às flores que iluminam os mortos de alma,
ao álcool da arte-pura-para-esquecer,
aos versos com túneis acesos por dentro das palavras,
aos pássaros a cantarem os perfumes das árvores secas,
às valsas com voos de tule
- e até ao sol
que diminui o mundo
em indiferença de continuar.
Ódio ao mar a modelar deuses
nos nossos corpos feios de tanto se julgarem belos.
Ódio à primavera
- essa mulher voadora
que entra pelas janelas
com asas azuis
para que a nossa dor
pareça preguiça de existir.
Ódio às serenatas que o luar faz do céu à terra,
às pétalas nos cabelos dos fantasmas ao vento,
às mãos-dadas nas sendas brancas dos idílios,
à pele de frio doce dos amantes,
aos colos das mães a embalarem futuro,
às crianças com céus do tamanho dos olhos,
às cartas de paixão a prometerem suicídios (para beijos mais fundos),
às insinuações de paraíso nas vozes de pedir esmola,
às escadas de corda nos olhos das noivas das trapeiras,
às danças a perfumarem de sexo a derrota,
às ninfas disfarçadas em canteiros de jardins,
e aos recantos foscos
onde escondemos a Verdade
em galerias de evasão
- só para que os nossos olhos continuem límpidos
a ignorarem todos os negrumes
com escadas até ao centro da terra.
Ódio ao disfarce, às máscaras, ao «falemos noutra coisa»,
aos desvios, às fontes dos claustros, ao «vamos logo ao cinema»,
aos problemas de xadrez, aos dramas de ciúme, às infantas do fogo das lareiras,
e aos que não têm a coragem
de estacar, pálidos,
com unhas na carne
a olhar de frente,
sem arrancar os olhos,
os caminhos dos mortos sagrados
até aos horizontes onde os homens se ofuscam das manhãs virgens.
Ódio a todas as fugas, a todos os véus,
a todas as aceitações, a todas as morfinas,
a todas as mãos ocas das prostitutas,
a todas as mulheres nuas em coxins de afagos,
para nos obrigarem a esquecer...
Mas eu não quero esquecer, ouviram?
Não quero esquecer!
Quero lembrar-me sempre, sempre e sempre
deste minuto de abismo,
para transmiti-lo de alma em alma,
de treva em treva,
de corvo em corvo,
de escarpa em escarpa,
de esqueleto em esqueleto,
de forca em forca,
até ao Ranger do Grande Dia
para a Salvação do Mundo
sem anjos
nem demónios
- mas só homens e Terra.
José Gomes Ferreira, in Heróicas (1936-1937-1938)
terça-feira, 28 de outubro de 2008
domingo, 26 de outubro de 2008
Noites Lisboetas (I)

Elias no Largo do Caldas: Neste largo apeou-se ela do táxi.
Ela é Mena no Inverno, três meses atrás, e não numa manhã como esta perfilada de sol. Viajou de autocarro desde a Casa da Vereda até ao viaduto Duarte Pacheco, última paragem à boca da cidade, e aí meteu a Campo de Ourique à procura dum táxi. Impermeável escorrido, lenço colado à cabeleira falsa, a ver passar pára-brisas. Elias faz ideia do desespero que não deve ter sido para ela essa manhã: é mais fácil enfiar um autocarro pelo cu duma agulha do que entrar num táxi em dia de chuva.
[«A respondente», lê-se nos Autos, «efectuou o percurso em conformidade com as instruções recebidas (...) em Lisboa, fez-se transportar de táxi até ao Largo do Caldas e dali prosseguiu a pé até ao escritório do dr. Gama e Sá, na Rua do Ouro, onde chegou por volta das dez e trinta horas da manhã»]
tendo evitado, como admite Elias, a Rua da Conceição, já que a Rua da Conceição é como toda a gente sabe a rota obrigatória dos moscardos entre a central da Pide e os curros da cadeia do Aljube. Légua da Morte, poderia chamar-se àquelas centenas de metros que vão das celas à tortura.
Mas Elias não veio ao Largo do Caldas para reconstruir os passos de Mena na manhã em que ela fez a primeira visita ao advogado. Dirige-se para lá, é certo, chegou a sua vez de apalpar a palavra do Ilustríssimo Gama e Sá, mas se passou por ali foi porque de casa para a Rua do Ouro o Caldas lhe fica em caminho de diligência, como se diz em serviço. Está-lhe ao pé da porta, sabe esse largo de trás para diante e de diante para trás, o largo com a barbearia duma só cadeira e espelho de moscas, com os marceneiros de meia cancela que nunca se vêem, só se ouvem, e com o casarão das janelas trancadas onde à noite anda uma luzinha a passear lá dentro. Numa manhã de sol como esta o casarão tem fatalmente um friso de pombas emproadas ao correr do telhado mas não vale a pena olhar, é sempre aquilo. Do outro lado é que sim, do outro lado, Rua da Madalena a descer, é a feira dos ortopédicos. Aí nunca falta que ver nem que meditar.
"Hoje, graças à Ciência, podemos reconstituir as partes mortas do corpo humano. Podemos animá-las de energia motora e restituir-lhes as formas e expressões que foram da sua natureza". – Eminente prof. Hasaloff, de Viena da Áustria.
Calçadas a pino, cada loja com o seu carrinho de inválido exposto à porta como se estivesse à espera da ordem de partida para um rally-surpresa. Vistas do cimo da rua, aquelas cadeiras resplandecentes parecem prontas a rolar a qualquer momento pelo plano inclinado abaixo, ganharem velocidade, altura, e desaparecerem como máquinas loucas sobrevoando os telhados da cidade. Ao pôr do Sol recolhem domesticamente, mas ficam as montras iluminadas porque essas são de todas as horas como os sacrários dos ex-votos no caminho de quem passa. Exibem membros articulados, espartilhos dramáticos que lembram palácios de tortura, pescoços de metal, Próteses & Fundas Medicinais. Numa das vitrinas, em molduras de veludo-relíquia, está o professor Hasaloff a proferir as suas palavras redentoras sobre as partes mortas do corpo.
Há também o carro da mão decepada, Elias nunca passa ali sem o olhar. E é fatal, estacionado diante da mesma loja, noite e dia sem arredar uma polegada, lá está o velho e familiar Oldsmobile com o letreiro Bazar Ortopédico / Orçamentos Grátis colado no vidro de trás. E a mão. Há sempre a tal mão pousada no volante, de borracha plástica, morena e quase terrosa e com um pulso peludo que termina num punho de camisa sem manga. Tem tudo, a mão, rugas, unhas, pêlos implantados nos poros; no dedo próprio vê-se uma aliança de casamento.
Elias verifica invariavelmente: os pneus do Oldsmobile estão cheios, a carroçaria sem as poeiras crestadas dos carros abandonados. Dá ideia que viaja sem ninguém se poder aperceber, que se desloca a horas misteriosas e por sítios inconfessáveis, conduzido pela mão decepada. E quando se passa ali, lá está: parece um daqueles heróicos automóveis dos caixeiros-viajantes dos outroras poeirentos que percorriam as províncias escalavradas, orgulhosos das mercadorias que transportavam. Ortopedias, orçamentos grátis. E a mão, que afinal é oca e podia ser uma mão-luva para revestir outra mão de carne com os mesmos pêlos, as mesmas unhas e os mesmos poros, a mão continua sem corpo mas fiel ao seu posto. Colocada sobre o volante como um selo de posse: O Oldsmobile é dela.
Nos acasos de Elias pelo Largo do Caldas há sempre este ponto obrigatório, a mão. Depois descerá ao Rossio, Restauradores, Parque Mayer, ou em inverso, rumo ao Tejo. Assim vai hoje, Rua Augusta abaixo. Semáforos e montras, filigranas, souvenirs, change-exchange, manequins e imponências bancárias, e bem no fim levanta-se o triunfal arco de pedra, porta da capital e o Tejo, todo em glória barroca e a irradiar bênçãos sobre o trânsito e o comércio, Ad Virtutem Maiorum. Bem no alto está o relógio solene, governo dos cidadãos, dez horas e trinta minutos. Estamos chegados.
Elias faz uma pausa de esquina para arrumar as ideias? O advogado fica a dois passos, só tem que virar à Rua do Ouro e entrar na primeira porta com engraxador.
Vão de escada com cavalheiros a lerem o jornal em tribunas de engraxador, cheiro a pomadas de cabedal, uma escada de madeira velha, é ali. Sobe por entre paredes de estuque suado, com o barulho da rua a escoar-se atrás dele, degrau a degrau, os pregões da lotaria, os travões dos autocarros, os panos de sacar brilho a estalarem no verniz do calçado. E quando é recebido lá em cima vê-se noutro mundo, maples de couro e silêncio alcatifado; sente-se um perfume morno, perfume de charuto, e a sala é de portas almofadadas, sombras a talhe doce. Elias está sentado diante duma mesa de mogno, numa extensão austera que ele atravessa com o braço para apresentar um documento:
Trata-se desta carta, senhor doutor. Saber se vossa excelência reconhece a letra e a assinatura.
Do outro lado despontam duas mãos vagarosas; brancas e lisas, despendem brilhos. Anéis, unhas envernizadas. Mais em cima uma gravata a tremular em seda, e todo o peito, que é imenso, resplandece contra o espaldar do cadeirão. Por último a cabeça: óculos a faiscar, pele luzidia, barba polida a after-shave e a toalhas de vapor.
Advogado Gama e Sá: Parece de facto a letra do major Dantas Castro. Lê e relê a carta. Sem pressas. Apalpando o queixo.
Elias Chefe: A carta é dirigida ao advogado de defesa e remetida de Paris.
Estou a ver, estou a ver, acena o advogado enquanto lê.
sábado, 25 de outubro de 2008
Lisboa de sempre
Lembras-te da aurora da nossa vida?
Dos regressos a uma casa que se deslocou para longe?
Do amor vertido em ódio por te perder?
* "Roubei" esta foto ao Yanneck, lá no «Olhar Macro» (eu avisei, não avisei?)
quinta-feira, 23 de outubro de 2008
Agora, o livro

quarta-feira, 22 de outubro de 2008
arca de noé 2 - galinha d'angola [ney matogrosso]
Bem podia hoje ter ido ao Coliseu ver o Ney. No princípio, não gostava, mas fui aprendendo com o tempo a apreciar, até que um dia fui ao Coliseu vê-lo. Talvez tenha sido o melhor ESPECTÁCULO que vi naquela ou em qualquer outra sala. Quem puder, vá lá amanhã.
segunda-feira, 20 de outubro de 2008
Pedido de desculpa
sábado, 18 de outubro de 2008
Passos em volta dos passos em volta
Ninguém.
Nada.
«Estou sozinho no mundo... Desapareceram todos... Para onde?»
Levantas-te.
A meio do cigarro fumado à janela da cozinha, outro noctívago surge, pé ante pé (ou pata ante pata?), cabeça baixa e pescoço esticado, em felina aproximação de caçador à presa.
«Não desapareceram todos. O gato da vizinha do rés-do-chão voltou a fugir e vai errar pela noite dentro.»
Assinala a tua presença. Altera a rota e aproxima-se. Pára. Senta-se, enrolando egipciacamente a cauda à volta dos dois pares de patas (ou de pés?) entretanto acomodados em quarteto, e fixa-te, imóvel e silencioso.
Fuma contigo o resto do cigarro, sem mover um músculo, sem esboçar o mais ténue movimento, envolto pela noite queda e pesada, sem lua e sem brisa.
– Eh, gato doido! Eh, bicho!
Esfíngico. De tal modo se habituou já às tuas pseudotoureiras provocações que, qual velho touro sabido, não se afasta “das tábuas”, confiante e cúmplice, no seu bem ensaiado papel de interlocutor silencioso destes diálogos a uma só voz.
Fim do cigarro.
Abres o frigorífico e retiras, para ti, uma água com gás, para ele, a última salsicha do frasco. Nem o projéctil arremessado aos seus pés (ou patas?) lhe provocou qualquer reacção por reflexa que fosse. Só quando se ouviu o silvo resultante da abertura da cápsula que aprisionava o carbono no interior da garrafa verde a sua cabeça se moveu na direcção da francofortesa.
Acendes outro cigarro, que, lenta mas avidamente, fumas enquanto ele vai mordiscando aquele maná, caído do céu da janela, que ‘bem podia estar menos frio’.
Cai do plátano uma folha, lentamente.
De longe, por entre o labirinto de betão, começa a chegar o som metálico e ritmado da passagem de um quase infinito comboio de mercadorias.
«Há mais gente acordada!»
Já não se ouve o comboio.
Salsicha comida. Limpeza de bigodes.
Cigarro fumado. Água bebida.
Fechas a janela, enquanto ele reinicia a ronda.
Deitas-te, insone.
«Para ler, tenho de ligar o candeeiro, mas não me apetece luz. Música... mp3. Concerto de Brandemburgueses, n.º 1, de João Sebastião Bach!»
O diálogo agora tem já duas vozes, nenhuma delas a tua: as duas linhas melódicas que vão evoluindo, cada qual em seu naipe, de sopro ou de cordas, num jogo de sedução que oscila entre a subtileza e a exuberância.
Subitamente, fim do andamento.
Fim também da pilha do mp3.
O silêncio alia-se novamente ao breu e voltam, ambos, a envolver-te.
Bem abres os olhos e apuras os ouvidos, mas...
Nada.
Ninguém.
*Mote alheio para estas minhas voltas: «Estilo», o primeiro texto de Os passos em volta (1963), de Herberto Helder.
sexta-feira, 17 de outubro de 2008
17 de Outubro de 1935

3 dias depois, Mao Tse Tung e as suas forças comunistas terminam, em Yan'an, Shaanxi, a "Grande Marcha"
quinta-feira, 16 de outubro de 2008
Domingo
Sobre o Mário Viegas, escreverei um dia. Hoje, apetece-me dar os parabéns (já uns minutos atrasados para o dia 15) ao Manuel da Fonseca, escritor por quem sempre senti uma ternura especial e que, se ainda estivesse vivo, completaria hoje os 97 anos que espero o meu tio-avô Joaquim possa vir a celebrar daqui a um mês. Lembro-me de um dia o ver na Feira do Livro a autografar livros e de ter sentido uma enorme vontade de chegar perto dele e lhe beijar a careca como se do meu avô se tratasse. Ainda hoje me arrependo de o não ter feito. Lembro-me de estar um dia a almoçar, no ano do meu estágio, quando a notícia da sua morte me apanhou de surpresa, e de ter chorado e sofrido como se tivesse perdido alguém muito próximo. De tal forma que a minha mãe chegou a pensar que eu estava doente. Vou-o lembrando a algumas pessoas. É raro o ano lectivo em que, mesmo fora dos programas, eu não leia com os meus alunos um qualquer texto seu. «O vagabundo na esplanada» é quase incontornável - os miúdos percebem e gostam. Mas quase nunca levo para as aulas a sua poesia, que também me diz muito, mas que - pelo menos alguma - não consegue livrar-se das marcas do tempo da resistência (cantada pelo Adriano, pelo Lopes-Graça e outros). Mas acho este poema lindíssimo e quis partilhá-lo convosco.
domingo, 12 de outubro de 2008
sábado, 11 de outubro de 2008
sexta-feira, 10 de outubro de 2008
Sonho
quinta-feira, 9 de outubro de 2008
quarta-feira, 8 de outubro de 2008
Maré que enche
Hoje à tarde, a maré enchia assim no nosso finis terrae, com toda a força e todo o vigor que são habituais no quotidiano amplexo do mar com a ocidental praia.
* especialmente para a Lady Godiva...
(Nove) Vidas
segunda-feira, 6 de outubro de 2008
domingo, 5 de outubro de 2008
Cântico dos Cânticos
Coro.
9 O que distingue dos outros o teu amado,
ó mais bela entre as mulheres?
O que distingue dos outros o teu amado,
para que assim nos conjures?
Ela.
10 O meu amado é branco e corado,
inconfundível entre milhares:
11 Sua cabeça é ouro puro,
a cabeleira é como leques de palmeira,
é negra como o corvo.
12 Seus olhos são pombos,
junto aos cursos de água,
banhando-se em leite,
detendo-se no remanso.
13 Suas faces são canteiros de bálsamos,
tufos de ervas aromáticas.
Seus lábios são como lírios,
a destilar um fluido de mirra.
14 Suas mãos são braceletes de ouro,
guarnecidas com pedras de Társis.
Seu corpo é marfim lavrado,
recoberto de safiras.
15 Suas pernas são colunas de alabastro,
assentadas em bases de ouro.
Seu aspecto, como o Líbano, airoso como os cedros.
16 Sua boca é só doçura; todo ele, pura delícia.
Tal é o meu amado, assim é o meu amigo,
ó filhas de Jerusalém.
Cant., 5, 9-16
sábado, 4 de outubro de 2008
sexta-feira, 3 de outubro de 2008
Requiem

quinta-feira, 2 de outubro de 2008
quarta-feira, 1 de outubro de 2008
terça-feira, 30 de setembro de 2008
domingo, 28 de setembro de 2008
Agarrado à vida
Saí, decidido, para a rua (mas sem a “carteira castanha” do Tê/Veloso) e comecei a aproveitar a (pouca) luz da tarde já avançada. Resolvi ir pelo Largo, pois duas horas antes tinha conseguido uma foto sem absolutamente vivalma (tinha começado a chover!) e queria ver o que se passava a esta hora. Como o Sol tinha, ainda que timidamente, voltado, muita gente povoava a pequena praça. «Sigo já para o Espingardeiro», decidi. Contornando o chafariz como se de uma rotunda se tratasse, encaminhava-me para o antigo caminho da floresta, quando, num dos bancos do topo nordeste – onde não é costume –, vejo sentado o último dos Montinhos, o meu tio-avô Joaquim.
– Boa tarde! ‘Tá bom, Ti Joaquim?
– Olá, ‘tá bom? Quem...?
– Sou o Vítor... (o tio Joaquim viu sempre pouco, e agora então...)
– Ah, o Vitro... então o teu pai, está melhor?
– Vai mexendo mais... há bocado conseguiu vir aqui ao Isménio tomar café... mesmo na hora em que choveu...
– As nhas moças já me disseram que choveu, mas ê nã di notíiça...
– Eram para aí três horas, três e um quarto. Se calhar, estava a dormir a folga?!
– Pois... (sorrindo) ‘tava...
– Então e como é que tem andado?
– Olha, com quatro pernas! (com um gesto de doce amabilidade para com elas, apresenta-me, pousadas cada uma ao longo de uma das suas pernas estendidas, as suas “amigas”, as canadianas de alumínio) Com estas duas novas para ajudarem as velhas, que já estão muito ferrugentas nas dobradiças... tenho os joelhos muito presos... é o que me custa mais...
– Então, tem de andar um bocadinho de vez em quando para olear as ferragens...
– É... é o que eu faço... venho andando desde a casa ‘té aqui e depois sento-me um bocadinho...
– Mas hoje não está no banco do costume.
– Vim andando à pergunta da sombra e parí aqui neste...
– A fazer companhia aos gatos do Chico dos Porcos...
– São malinos! Tão depressa ‘tão dormindo como nã param quedos!
– Mas o tio e os seus camaradas hoje estão todos espalhados... aquele companheiro já esteve naquele banco e agora mudou para outro... e o outro companheiro hoje tem outra companhia...
– Tarda nada ‘tã-se a juntar...
– Para aqui se calhar hoje não vêm... viram-me aqui consigo.
– Ná... isto temos que ir mudando de companha...
– Para variar as conversas.
– As conversas são quase sempre as mesmas...
– Têm de se entreter...
– É... de manhêm vou por aí a baixo ao barbêro... e à tarde venho até aqui um poucachinho falar com os moços... (ri-se) com os velhos como eu...
– O tio agora é o mais velho cá da terra!
– É... agora nã há aí nenhum mais velho... às vezes, ‘tá aí uma senhora, que casou aí com o ??????, que é mais velha que eu, acho que uns meses... mas ela mora lá para Lisboa, e quando ela nã ‘tá cá sou eu o mais velho...
– Que idade é que tem agora?
– Se chegar a 21 de Novembro, faço 97...
– Então tem quatro de diferença para a minha avó; se ela fosse viva, já tinha 101, feitos em Março...
– Quatro? Nã sei... é capaz, sim... deve ser mais ou menos isso... ‘tão, a Conceição era más velha qu' eu aí uns dois anos... e a seguir era a Chica, a tua avó... sim... é capaz de ser isso... quantos é que disseste?... 101? Éramos oito e as diferenças duns para os outros eram mais ou menos de dois anos... é capaz, sim... A ‘Delaida era dois anos mais nova qu' eu, e o Toino tinha quase quatro de diferença de mim... Já foram todos... até os mais novos...
– O tio é o último dos Montinhos.
– Pois sou... E também já nã vive lá ninguém. Raça acabada! Quando vier aí o homem que leva a gente e me levar, acaba-se a raça...
– Ó tio, mas se ele aparecer, convença-o a voltar mais tarde... diga-lhe que ainda queria ver este Natal... e depois, quando voltar, empate-o até à Páscoa... depois, que é só mais um Verão...
– Agora cá, que ele já nã vai nessa conversa. Já o ando a enganar há muito tempo... já ando agarrado à vida há muito tempo!
Entretanto, chegou a Leonor, uma das filhas, e a conversa mudou...
Acabei por ir tirar fotografias já quase de noite, mas ganhei mais uma hora de vida... com o pouco que já resta das minhas raízes mais antigas...
Não fotografei o Tio Joaquim!