domingo, 26 de outubro de 2008

Noites Lisboetas (I)

Faz hoje dez anos que nos deixaste as noites mais vazias. Queria ir hoje ao Clínica Bar, sentar-me ali no segundo ou terceiro tamborete, acender um cigarro e, se o "enfermeiro" Rita ainda for o bar tender, pedir-lhe:
- Rita, dê-me um duplo do do Cardoso Pires.
Bebi contigo meia dúzia de vezes debaixo desse tecto, sem nunca te ter dito mais do que o «Boa Noite» para a geral, mas os nossos olhares cruzaram-se cúmplices no reconhecimento mútuo dos iniciados em sociedades secretas: os teus sinais de grão-mestre da escrita e os meus de aprendiz da leitura.
Li pouco do que escreveste.
Li O Delfim há tanto tempo que, prometo-te, vou lê-lo outra vez um dia destes, de tal modo se fundiu no fundo da memória com outros textos.
A Balada da Praia dos Cães, essa de vez em quando é "relida", principalmente quando passo em certas zonas da cidade. Nunca, Zé, nunca mais pude passar na Rua da Madalena sem que me lembrasse de ti. E é para lá que vamos agora...

Bazar Ortopédico

Elias no Largo do Caldas: Neste largo apeou-se ela do táxi.
Ela é Mena no Inverno, três meses atrás, e não numa manhã como esta perfilada de sol. Viajou de autocarro desde a Casa da Vereda até ao viaduto Duarte Pacheco, última paragem à boca da cidade, e aí meteu a Campo de Ourique à procura dum táxi. Impermeável escorrido, lenço colado à cabeleira falsa, a ver passar pára-brisas. Elias faz ideia do desespero que não deve ter sido para ela essa manhã: é mais fácil enfiar um autocarro pelo cu duma agulha do que entrar num táxi em dia de chuva.

[«A respondente», lê-se nos Autos, «efectuou o percurso em conformidade com as instruções recebidas (...) em Lisboa, fez-se transportar de táxi até ao Largo do Caldas e dali prosseguiu a pé até ao escritório do dr. Gama e Sá, na Rua do Ouro, onde chegou por volta das dez e trinta horas da manhã»]

tendo evitado, como admite Elias, a Rua da Conceição, já que a Rua da Conceição é como toda a gente sabe a rota obrigatória dos moscardos entre a central da Pide e os curros da cadeia do Aljube. Légua da Morte, poderia chamar-se àquelas centenas de metros que vão das celas à tortura.
Mas Elias não veio ao Largo do Caldas para reconstruir os passos de Mena na manhã em que ela fez a primeira visita ao advogado. Dirige-se para lá, é certo, chegou a sua vez de apalpar a palavra do Ilustríssimo Gama e Sá, mas se passou por ali foi porque de casa para a Rua do Ouro o Caldas lhe fica em caminho de diligência, como se diz em serviço. Está-lhe ao pé da porta, sabe esse largo de trás para diante e de diante para trás, o largo com a barbearia duma só cadeira e espelho de moscas, com os marceneiros de meia cancela que nunca se vêem, só se ouvem, e com o casarão das janelas trancadas onde à noite anda uma luzinha a passear lá dentro. Numa manhã de sol como esta o casarão tem fatalmente um friso de pombas emproadas ao correr do telhado mas não vale a pena olhar, é sempre aquilo. Do outro lado é que sim, do outro lado, Rua da Madalena a descer, é a feira dos ortopédicos. Aí nunca falta que ver nem que meditar.

"Hoje, graças à Ciência, podemos reconstituir as partes mortas do corpo humano. Podemos animá-las de energia motora e restituir-lhes as formas e expressões que foram da sua natureza". – Eminente prof. Hasaloff, de Viena da Áustria.

Calçadas a pino, cada loja com o seu carrinho de inválido exposto à porta como se estivesse à espera da ordem de partida para um rally-surpresa. Vistas do cimo da rua, aquelas cadeiras resplandecentes parecem prontas a rolar a qualquer momento pelo plano inclinado abaixo, ganharem velocidade, altura, e desaparecerem como máquinas loucas sobrevoando os telhados da cidade. Ao pôr do Sol recolhem domesticamente, mas ficam as montras iluminadas porque essas são de todas as horas como os sacrários dos ex-votos no caminho de quem passa. Exibem membros articulados, espartilhos dramáticos que lembram palácios de tortura, pescoços de metal, Próteses & Fundas Medicinais. Numa das vitrinas, em molduras de veludo-relíquia, está o professor Hasaloff a proferir as suas palavras redentoras sobre as partes mortas do corpo.
Há também o carro da mão decepada, Elias nunca passa ali sem o olhar. E é fatal, estacionado diante da mesma loja, noite e dia sem arredar uma polegada, lá está o velho e familiar Oldsmobile com o letreiro Bazar Ortopédico / Orçamentos Grátis colado no vidro de trás. E a mão. Há sempre a tal mão pousada no volante, de borracha plástica, morena e quase terrosa e com um pulso peludo que termina num punho de camisa sem manga. Tem tudo, a mão, rugas, unhas, pêlos implantados nos poros; no dedo próprio vê-se uma aliança de casamento.
Elias verifica invariavelmente: os pneus do Oldsmobile estão cheios, a carroçaria sem as poeiras crestadas dos carros abandonados. Dá ideia que viaja sem ninguém se poder aperceber, que se desloca a horas misteriosas e por sítios inconfessáveis, conduzido pela mão decepada. E quando se passa ali, lá está: parece um daqueles heróicos automóveis dos caixeiros-viajantes dos outroras poeirentos que percorriam as províncias escalavradas, orgulhosos das mercadorias que transportavam. Ortopedias, orçamentos grátis. E a mão, que afinal é oca e podia ser uma mão-luva para revestir outra mão de carne com os mesmos pêlos, as mesmas unhas e os mesmos poros, a mão continua sem corpo mas fiel ao seu posto. Colocada sobre o volante como um selo de posse: O Oldsmobile é dela.
Nos acasos de Elias pelo Largo do Caldas há sempre este ponto obrigatório, a mão. Depois descerá ao Rossio, Restauradores, Parque Mayer, ou em inverso, rumo ao Tejo. Assim vai hoje, Rua Augusta abaixo. Semáforos e montras, filigranas, souvenirs, change-exchange, manequins e imponências bancárias, e bem no fim levanta-se o triunfal arco de pedra, porta da capital e o Tejo, todo em glória barroca e a irradiar bênçãos sobre o trânsito e o comércio, Ad Virtutem Maiorum. Bem no alto está o relógio solene, governo dos cidadãos, dez horas e trinta minutos. Estamos chegados.
Elias faz uma pausa de esquina para arrumar as ideias? O advogado fica a dois passos, só tem que virar à Rua do Ouro e entrar na primeira porta com engraxador.
Vão de escada com cavalheiros a lerem o jornal em tribunas de engraxador, cheiro a pomadas de cabedal, uma escada de madeira velha, é ali. Sobe por entre paredes de estuque suado, com o barulho da rua a escoar-se atrás dele, degrau a degrau, os pregões da lotaria, os travões dos autocarros, os panos de sacar brilho a estalarem no verniz do calçado. E quando é recebido lá em cima vê-se noutro mundo, maples de couro e silêncio alcatifado; sente-se um perfume morno, perfume de charuto, e a sala é de portas almofadadas, sombras a talhe doce. Elias está sentado diante duma mesa de mogno, numa extensão austera que ele atravessa com o braço para apresentar um documento:
Trata-se desta carta, senhor doutor. Saber se vossa excelência reconhece a letra e a assinatura.
Do outro lado despontam duas mãos vagarosas; brancas e lisas, despendem brilhos. Anéis, unhas envernizadas. Mais em cima uma gravata a tremular em seda, e todo o peito, que é imenso, resplandece contra o espaldar do cadeirão. Por último a cabeça: óculos a faiscar, pele luzidia, barba polida a after-shave e a toalhas de vapor.
Advogado Gama e Sá: Parece de facto a letra do major Dantas Castro. Lê e relê a carta. Sem pressas. Apalpando o queixo.
Elias Chefe: A carta é dirigida ao advogado de defesa e remetida de Paris.
Estou a ver, estou a ver, acena o advogado enquanto lê.

3 comentários:

Carlos Lopes disse...

Pois é, 10 anos!!! Ainda me lembro do número zero da revista Ler que tinha o Cardoso Pires na capa, já lá vão tantos anos. Eu e o Janeca temos esse número (pré) histórico. Se quiseres um conselho, lê Alexandra Alpha e De Profundis, Valsa Lenta. Cada um no seu género, são autênticas obras-primas.

Vítor disse...

É, e essa Ler deve ter pelo menos 20, se não um bocadinho mais. Eu também a tenho (ou tinha). Esses títulos estão "na calha" há tanto tempo, Carlos...
Abraço

Lady Godiva disse...

Curioso! Só tenho (e só li) aqueles que o Carlos te sugere. Muito diferentes, muito para serem lidos. Quando puderes, vai fundo. Quanto ao resto... encolho-me!