sábado, 18 de outubro de 2008

Passos em volta dos passos em volta

Acordas às quatro da manhã, vês o breu e ouves o silêncio.
Ninguém.
Nada.
«Estou sozinho no mundo... Desapareceram todos... Para onde?»
Levantas-te.
A meio do cigarro fumado à janela da cozinha, outro noctívago surge, pé ante pé (ou pata ante pata?), cabeça baixa e pescoço esticado, em felina aproximação de caçador à presa.
«Não desapareceram todos. O gato da vizinha do rés-do-chão voltou a fugir e vai errar pela noite dentro.»
Assinala a tua presença. Altera a rota e aproxima-se. Pára. Senta-se, enrolando egipciacamente a cauda à volta dos dois pares de patas (ou de pés?) entretanto acomodados em quarteto, e fixa-te, imóvel e silencioso.
Fuma contigo o resto do cigarro, sem mover um músculo, sem esboçar o mais ténue movimento, envolto pela noite queda e pesada, sem lua e sem brisa.
– Eh, gato doido! Eh, bicho!
Esfíngico. De tal modo se habituou já às tuas pseudotoureiras provocações que, qual velho touro sabido, não se afasta “das tábuas”, confiante e cúmplice, no seu bem ensaiado papel de interlocutor silencioso destes diálogos a uma só voz.
Fim do cigarro.
Abres o frigorífico e retiras, para ti, uma água com gás, para ele, a última salsicha do frasco. Nem o projéctil arremessado aos seus pés (ou patas?) lhe provocou qualquer reacção por reflexa que fosse. Só quando se ouviu o silvo resultante da abertura da cápsula que aprisionava o carbono no interior da garrafa verde a sua cabeça se moveu na direcção da francofortesa.
Acendes outro cigarro, que, lenta mas avidamente, fumas enquanto ele vai mordiscando aquele maná, caído do céu da janela, que ‘bem podia estar menos frio’.
Cai do plátano uma folha, lentamente.
De longe, por entre o labirinto de betão, começa a chegar o som metálico e ritmado da passagem de um quase infinito comboio de mercadorias.
«Há mais gente acordada!»
Já não se ouve o comboio.
Salsicha comida. Limpeza de bigodes.
Cigarro fumado. Água bebida.
Fechas a janela, enquanto ele reinicia a ronda.
Deitas-te, insone.
«Para ler, tenho de ligar o candeeiro, mas não me apetece luz. Música... mp3. Concerto de Brandemburgueses, n.º 1, de João Sebastião Bach!»
O diálogo agora tem já duas vozes, nenhuma delas a tua: as duas linhas melódicas que vão evoluindo, cada qual em seu naipe, de sopro ou de cordas, num jogo de sedução que oscila entre a subtileza e a exuberância.
Subitamente, fim do andamento.
Fim também da pilha do mp3.
O silêncio alia-se novamente ao breu e voltam, ambos, a envolver-te.
Bem abres os olhos e apuras os ouvidos, mas...
Nada.
Ninguém.


*Mote alheio para estas minhas voltas: «Estilo», o primeiro texto de Os passos em volta (1963), de Herberto Helder.

5 comentários:

Clarice disse...

Tão bonito... que já me provocou um desafio: ir atrás destes "Passos em volta", só espero que a minha querida Zadie Smith não seja ciúmenta, mas este livro vírá já a seguir...

Gostei muitos destes passos nocturnos, e em particular deste com o qual me identifico tanto: :) "Abres o frigorífico e retiras, para ti, uma água com gás...". Adoro agua com gás acabadinha de saír do frio!

Bela escolha esta Vítor, que me espreitou agora mal acordei. É por isto também que tenho gostado tanto de escrever por estas bandas blogosféricas...
um beijinho

Carlos Lopes disse...

"Se eu quisesse enlouquecia..." e por aí vai um dos mais belos contos alguma vez escritos em Portugal. O teu, amigo Vítor, é igualmente belíssimo.

Vítor disse...

Clarice:
Vai ser difícil ires atrás 'destes' "Passos", pois não há mais nenhuns - só escrevi estes. Se quiseres ir atrás dos do Herberto Helder, eu empresto-tos, mas não faças ciúmes à rapariga que isso até lhe pode 'escurecer os dentes'.
Beijo

Carlos:
Concordo contigo em apenas metade do que dizes, a que se refere ao texto do HH; é que o meu não saiu muito mal mas é apenas um textículo.
Abraço

Lady Godiva disse...

Andei muito em volta dos teus "Passos em "Volta" d' "Os Passos em Volta" do HH. Muito perdida na procura do dizer o quê. Talvez esmagada! Fui e vim. Levantei-me, voltei a sentar-me. "Parabéns" seria bom?! Toda a gente diz "parabéns", toda a gente manda beijos! Mas que mania a minha de ser diferente!
Quando era adolescente (estou a afastar-me? - serão "passos em volta" - talvez!) usei um crachá azul com letras amarelas, onde se lia "I don't want to be normal!") (entenda-se o que se quiser).
Estive ali sempre, à volta dos teus passos em volta..., a reparar nos "pés e nas patas"; nas "patas e nos pés", no cigarro fumado em conjunto com a solidão, na noite sem oferta, no macilento ritual da existência, no silêncio e no breu.
E aí fiquei.
Movi-me de novo quando senti nos tímpanos o "silvo" resultante do eco provocado pela falta do meu som...
Não sei o que dizer é o que tenho para te dizer! Talvez em presença pudesses ter reparado na lágrima...

Vítor disse...

Lady:
Passamos a vida a andar à volta dos passos de alguém, até mesmo dos nossos e, na maior parte do tempo, não sabemos o que dizer(-nos). Pode ser tão mais primordial ouvir um sibilo silente!