V
(Notícia da morte de Fernando Pessoa. Tantas
vezes ouvi música perto dele no «promenoir»
do Politeama)
Ah! se acontecesse enfim qualquer coisa!
Se de repente saísse da terra um braço
e atirasse uma rosa
para o espaço.
Mas não.
Lá está o sol do costume
com a exactidão
de uma bola de lume
desenhada a compasso...
... sol que à noite continua
a andar em redor
nas entranhas da lua
– que é sol com bolor...
E desde que nasci,
haja paz ou guerra,
nunca vi outra coisa.
Ah! como queres que acredite em ti
– braço que hás-de romper a terra
e atirar uma rosa?
José Gomes Ferreira,
A Morte de D. Quixote
(1935-1936)
5 comentários:
O menino de sua mãe
No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado
Duas, de lado a lado
Jaz morto, e arrefece.
Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.
Tão jovem! Que jovem era!
(agora que idade tem?)
Filho unico, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino de sua mãe.»
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.
De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço… deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.
Lá longe, em casa, há a prece:
“Que volte cedo, e bem!”
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto e apodrece
O menino da sua mãe
Fernando Pessoa
*ouvi este poema pela voz do meu pai, muito antes de saber ler. É também por isso um dos meus poemas preferidos.
o beijinho que não ficou em cima, vai agora:)
clarice:
Também gosto muito deste poema.
Tenho uma história curiosa a propósito: na correcção de um exame de 12.º ano, há dois ou três anos atrás, um ou dois alunos 'comentaram' o simbolismo da cigarreira de um modo estranho para mim, dizendo que remetia para uma vida de pobreza e miséria. Não pude classificar positivamente, pois afastava-se muito dos critérios de correcção e do esperável no contexto. As provas vinham do estrangeiro, num continente especial. Sem saber de onde, desconfiei que de Macau. Ao comentar com um colega que lá esteve muitos anos a dar aulas, percebi: cigarreira é um dos nomes pelos quais é conhecido aquele "uniforme" que (quase) todos os chineses usavam - o famoso fato de ganga, igual para toda a gente - nos tempos do maoismo. Aqueles que conseguiam fugir da China para Macau sobreviviam, muitas vezes, vendendo cigarros nas ruas, envergando, literalmente, tudo o que tinham: a roupa no corpo.
Vá lá a gente, por mais que tente, descodificar bem todos os sinais em que 'tropeçamos'!
Desculpa, o meu também vai só agora!
Passo a olhar para a cigarreira de uma outra forma, depois de ler a tua história.
As pessoas, as suas vidas é que nos fazem olhar sempre de formas diferentes para as coisas.
Grande lição!
beijinho
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